Portugal precisa de um salário máximo

Se concordamos que o salário mínimo é essencial para uma sociedade mais justa e mais igual, não devemos também considerar que salários ilimitados são causadores de mais desigualdade?

A anunciada e tão desejada vacina para a covid-19 travará a crise pandémica; mas não será a cura, nem para a crise económica, nem para o acentuar das desigualdades. Em 2021 teremos mais pessoas no desemprego, mais empresas a falir e um aumento do crédito malparado. No entanto, continuamos a ouvir falar de milionários, e de salários equivalentes a centenas de vezes o salário mínimo, e tomamos isto como socialmente aceite. Em 2018, o CEO mais bem pago em Portugal ganhava um valor equivalente a 281 vezes o salário mínimo nacional. Devemos questionar-nos: este gestor trabalha, ou contribui para o país, num ano, o equivalente a quase três séculos de trabalho dos cidadãos mais mal pagos? Sabemos, através dos últimos indicadores económicos, que foram os trabalhadores com salários mais baixos os que mais sofreram durante a pandemia e que perderam rendimentos e postos de trabalho, enquanto os mais ricos acumularam mais riqueza e bem-estar.

O consenso nas nossas elites políticas é o de que esta é uma falsa questão – o grande problema não se coloca na obtenção de riquezas por quem está no topo, mas sim na existência de pobreza. Esta lógica é perversa, porque a desigualdade só pode ser reduzida se, para além de eliminarmos a pobreza, diminuirmos também a diferença entre os que ganham mais e as restantes classes sociais. Sim, os rendimentos injustamente baixos são a parte mais óbvia do problema, mas será saudável e desejável, numa sociedade republicana, termos os atuais níveis desmesurados de concentração de riqueza?

A resposta é um definitivo não – e as consequências afetam-nos a todos, de forma muito mais profunda do que nos podemos aperceber à primeira vista. Para começar, a desigualdade põe em risco o sentido de comunidade; não só porque a diferença drástica de perspectiva e de estilos de vida nos torna a todos mais distantes; não só porque a consciência generalizada de que a disparidade é injusta cria uma falta de confiança no sistema; não só porque gera uma cultura de materialismo que hierarquiza as pessoas pelo que conseguem comprar; mas também porque leva inevitavelmente a que existam diferentes sistemas paralelos de justiça, consoante as possibilidades financeiras de quem vai a tribunal. Mas também corrói o próprio sistema democrático: quando uma minúscula minoria da população concentra uma quantidade radicalmente desproporcional de riqueza, passa a deter uma quantidade tão desmesurada de recursos, e de influência política, que o poder de influência do comum cidadão se torna, em grande medida, irrelevante. Além disso, em última análise, os crimes de corrupção só são possíveis quando estão envolvidas quantias exuberantes, que logicamente só podem ser oferecidas por quem tem fortunas extraordinárias.

Sabemos ainda que há uma correlação entre altos indicadores de desigualdade (não apenas de pobreza) e uma elevada prevalência de problemas sociais que nos afectam directamente a todos – menor esperança de vida, aumento de problemas de saúde mental, e maiores indicadores de violência, de consumo de drogas, de obesidade e de insucesso escolar. E, claro, não esqueçamos que, se a nossa civilização está neste momento à beira de uma catástrofe climática, isto apenas acontece porque não há quaisquer limites à acumulação de riqueza – a indústria petrolífera só continua a existir porque gera lucros milionários para uma minoria minúscula da população, alguns grandes executivos que por via da sua fortuna se conseguem facilmente isolar dos impactos das alterações climáticas.

Ora, apesar do problema da desigualdade de rendimentos não se reduzir à disparidade nos salários, a injustiça salarial é um dos pontos onde devem ser tomadas medidas. Se concordamos que o salário mínimo é essencial para uma sociedade mais justa e mais igual, não devemos também considerar que salários ilimitados são causadores de mais desigualdade? Quando queremos alavancar a sociedade, subindo o salário mínimo, não devemos também considerar a necessidade de existir um valor máximo?

Precisamos, por isso, de criar urgentemente um teto ao rendimento salarial – um salário máximo nacional – e indexá-lo ao salário mínimo nacional. O salário mais bem pago do país nunca deveria ser superior a 30 vezes o salário mínimo; se o salário de um CEO estiver limitado e o seu aumento estiver dependente da subida do salário mínimo nacional, o CEO terá todo o interesse, não apenas em que os seus trabalhadores produzam mais e melhor, mas também na subida do salário mínimo nacional, visto que esta alavancará a subida do salário máximo.

Esta nossa proposta nada tem de original. A preocupação com limitar os rendimentos dos mais ricos já vem desde finais do século XIX, e vem sido repetidamente recuperada desde então. Durante a Segunda Guerra Mundial, o Presidente americano Franklin Roosevelt chegou a implementar brevemente, e por decreto executivo, um salário máximo. É uma ideia antiga que se pode complementar com outras medidas, como um rendimento máximo nacional, ou um rácio máximo para a disparidade salarial nas empresas. No entanto, a nossa proposta é clara: um salário máximo até 30 vezes o salário mínimo. Acreditamos que esta é uma medida justa e equitativa, que permitirá diminuir as desigualdades e construir uma sociedade mais justa, mais igualitária, mais democrática.

Marisa Filipe, Historiadora e activista
Eduardo Proença, Músico e activista

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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