Montaria na Azambuja: ministro do Ambiente vai apresentar queixa ao MP e pede “alterações na lei”

Instituto de Conservação da Natureza vai apresentar queixa ao Ministério Público e revogar licença de caça da Quinta da Torre Bela. Matos Fernandes considera matança “ignóbil”.

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O ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, admite que a matança de 540 veados e javalis numa caçada realizada na Azambuja na passada semana, na Quinta da Torre Bela, possa constituir crime. “O Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas está neste momento a recolher as provas daquilo que pode muito bem ser um crime”, revelou o governante aos microfones da rádio TSF. 

“O ICNF vai de imediato revogar a licença de caça [da herdade] e vai, com o trabalho que está hoje a fazer no terreno, apresentar uma queixa ao Ministério Público, porque muito provavelmente terão de ser criminalizados quem organizou, quem tem aquela licença e, muito provavelmente, os próprios caçadores que nela participaram”, garantiu João Pedro Matos Fernandes, admitindo ter ficado chocado com as imagens que foram divulgadas dos cadáveres dos animais alinhados no chão, como troféus de caça.

“Eu não confundo este acto vil, este acto de ódio, com a caça, não há má vontade em relação aos caçadores”, acrescentou, admitindo, porém, uma revisão das normas que regem esta actividade, em particular as montarias. “Têm de ser comunicadas antes de acontecerem, para poderem ser fiscalizadas. Para impedir que situações como estas se repitam”.

“A caça repovoa um conjunto de ecossistemas, existe, é autorizada, para gerir recursos cinegéticos. Não é para matanças generalizadas, como foi o caso”, sublinhou ainda o governante. 

Ministro vai apresentar queixa 

Em comunicado, o gabinete de João Pedro Matos Fernandos confirmou que irá, em articulação com o ICNF, fazer uma participação junto do Ministério Público (MP) “sobre os acontecimentos na Herdade da Torrebela”. Na nota enviada às redacções, o ministério “entende que as denúncias e notícias sobre o abate indiscriminado de animais na Herdade da Torrebela nada tem a ver com a actividade cinegética, entendida como uma prática que pode contribuir para a manutenção da biodiversidade e dos ecossistemas”. 

No mesmo comunicado, o ministério adianta que irá ainda convocar o Conselho Nacional da Caça para, no início do ano, se realizar uma reflexão sobre a prática de montarias em Portugal. “É entendimento do ministério que são necessárias alterações à lei para impedir que os vis acontecimentos relatados se repitam”, pode ler-se nessa nota informativa.

Mais tarde, à margem da reunião do Conselho de Ministros, Matos Fernandes considerou “ignóbil” o sucedido e anunciou que as 1500 zonas de caça turística onde se realizam este tipo de actividades vão ser inspeccionadas. Quanto à revisão da lei, começará por ser focada nas montarias, mas poderá depois evoluir para uma alteração mais ampla. 

Mais de 500 animais mortos

 De acordo com imagens divulgadas nas redes sociais, acompanhadas por frases em inglês que falam de um “super-recorde” numa montaria organizada em Portugal, terão sido 540 os animais mortos por apenas 16 caçadores.

O caso gera ainda mais controvérsia porque está, nesta altura, em avaliação a possibilidade de instalar um enorme parque de painéis fotovoltaicos numa área de 775 hectares da Torre Bela e há quem veja nestas acções uma tentativa de “limpar” a quinta para este fim. 

Além dos muitos anónimos que condenaram o sucedido nas redes sociais, também o deputado socialista Tiago Barbosa Ribeiro já exprimiu o que pensa sobre o assunto: “É um massacre. E quem o fez só pode ser doente.” Três organizações ligadas à caça – a Associação Nacional de Proprietários Rurais, a Fencaça e a Federação Nacional de Caçadores Portugueses também já repudiaram estas mortes, tal com o PAN e os grupos parlamentares do PS, do PSD, Bloco de Esquerda e PCP. 

Para o procurador Raul Farias, que durante vários anos lidou com os delitos contra animais na Procuradoria-Geral da República, o que pode estar em causa numa situação deste tipo é um crime de dano contra a natureza. Tudo dependerá da avaliação que o ICNF fizer do caso. Para se perceber se houve crime, vai ser preciso determinar, entre outras coisas, se foram eliminados muitos exemplares da fauna deste ecossistema. “Esta avaliação terá necessariamente de passar, numa primeira fase, por apurar se os animais abatidos pertenciam àquele ecossistema local ou se foram trazidos para o mesmo único e exclusivamente para a actividade da caça”, explica o magistrado. “No caso de pertencerem ao ecossistema local, se, em função do abate verificado, teve lugar uma redução significativa do número de exemplares daquelas espécies naquele ecossistema localizado”.

Além disso, a lei exige ainda que a eliminação dos animais “tenha subjacente a inobservância de disposições legais, regulamentares ou obrigações impostas pela autoridade competente” – o que, neste caso, pode ter sucedido, uma vez que parecem não ter sido cumpridas todas as formalidades legais ligadas à caçada e ao abate. “A avaliação que o ICNF venha a efectuar é fundamental para que possa existir uma abordagem da situação enquanto integrante da prática de crime e a subsequente investigação criminal”, diz também Raul Farias. 

Já a Provedora dos Animais de Lisboa, Marisa Quaresma dos Reis, fala num crime não só moral como também legal, mas por via da violação da lei de bases da caça, que estabelece limites para os quantitativos de captura. E o ministro confirma: o número de abates permitidos neste local será realmente muito inferior ao efectuado. 

A provedora gostaria de ver interdita a caça desportiva em Portugal, à semelhança do que acontece há décadas no Brasil, onde só há permissão para matar animais para subsistência ou com o objectivo de controlar determinada espécie. Mas admite que o proibicionismo também tem riscos: naquele país a caça desportiva continua a existir de forma clandestina, à revelia da lei. 

Matos Fernandes não explicou que tipo de crime pode estar em cima da mesa, tendo relegado essa tarefa para o Ministério Público. “Há princípios básicos da lei de bases do ambiente que foram desrespeitados”, apontou, reconhecendo, porém, que a lei da caça é omissa neste aspecto. O governante não achou necessário falar nem com as autoridades espanholas nem com o seu homólogo. E assinalou que o estudo de impacto ambiental relativo ao projecto de painéis fotovoltaicos prevê a transferência dos bichos para um terreno adjacente - não a sua eliminação massiva. “Já há muita gente que paga para ver este tipo de animais”, referiu. 

Chocado mostra-se também o bastonário dos veterinários, Jorge Cid, que fala num “atentado muito grave”. A Ordem dos Veterinários não recebeu nenhum pedido de veterinário espanhol para inspeccionar os cadáveres dos animais em território nacional, apesar de a carne se destinar previsivelmente a consumo humano. Se essa tarefa foi desempenhada por algum médico português, Jorge Cid ignora-o. 

O bastonário gostava de ver investigado o projecto para transformar esta vasta área com aptidão agrícola, cinegética e florestal num empreendimento de painéis fotovoltaicos. No Verão passado, o pirata informático Rui Pinto questiona a identidade dos verdadeiros proprietários da herdade da Torre Bela, que poderia, segundo afirmou, ter sido adquirida pelo ex-Presidente angolano José Eduardo dos Santos. 

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