2020: um planeta a respirar melhor versus o pesadelo dos descartáveis

Redução das emissões de gases com efeito de estufa, menos desperdício alimentar e mais reciclagem. 2020 podia ter sido um grande ano para o ambiente, não fosse o aumento exponencial da utilização de descartáveis.

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Nelson Garrido

A pandemia de covid-19 fez de 2020 um ano atípico no campo do ambiente, levando a uma redução de emissões de gases com efeito de estufa (GEE), mas aumentando exponencialmente a produção de materiais descartáveis.

O ano deveria ser marcante em termos ambientais, com uma cimeira mundial sobre biodiversidade e outra sobre o clima. Cinco anos após o Acordo de Paris, os países iriam apresentar metas mais ambiciosas para impedir o aquecimento global. A pandemia de covid-19, que até agora já provocou mais de 1,6 milhões de mortes, mais de 6000 só em Portugal, fez, no entanto, adiar essas e outras iniciativas.

A humanidade comprometeu-se em 2015, no Acordo de Paris, em não deixar que o aquecimento global fosse além dos dois graus Celsius (2ºC) em relação à época pré-industrial. O surgimento da pandemia na China e a sua propagação mundial no primeiro trimestre do ano fez aquilo que os países ainda não tinham conseguido, reduções drásticas das emissões de GEE, decorrentes dos confinamentos e paragem das actividades económicas.

Em 2020, as emissões de GEE podem ter diminuído 7%, ainda que, segundo a Organização Meteorológica Mundial, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera tenha continuado a aumentar. Em Abril, em confinamento, estudos indicavam que Portugal estava a emitir menos 52 mil toneladas de dióxido de carbono (CO2) por dia, com o mundo a emitir menos um milhão de toneladas diariamente.

A Agência Europeia do Ambiente (AEA), num documento divulgado em Novembro último, afirmava que as restrições para combater a propagação da doença “proporcionaram alguns impactos positivos a curto prazo no ambiente na Europa”, como redução do consumo de energia (e mais consumo de energias renováveis), melhorias temporárias na qualidade do ar e menos níveis de poluição sonora, além de uma redução “sem paralelo” de emissões (que chegaram a menos 70%), nomeadamente devido à redução da mobilidade.

Menos veículos durante o confinamento (com a abertura aumentaram os veículos a circular por medo de contágio em transportes públicos) foram sinónimo de menos emissões de poluentes, que voltaram a aumentar à medida que as restrições diminuíram, nota a Agência, salientando que, ainda assim, os países europeus ficaram com provas dos benefícios que podem ser conseguidos com menos poluição.

Todos os factores juntos tiveram ainda outra consequência ambiental, mudanças de comportamento de espécies animais e vegetais, com casos de mamíferos a “invadirem” as cidades e vilas. E mesmo quando tal não aconteceu, pelo menos a falta de ruído permitiu ouvir o cantar dos pássaros.

Mas as restrições também significaram menos turismo da natureza, menos voluntários e menos receitas para parques, e logo menos apoios à natureza gerida pelo homem, a lembrar que cada moeda tem duas faces. E a outra face da pandemia de covid-19 foi o aumento do descartável, muito dele de plástico.

A AEA nota, num relatório recente, que a pandemia “causou alterações significativas na produção e consumo de plásticos e nos resíduos plásticos”, com um “súbito aumento” da procura global de equipamento de protecção individual (EPI), como máscaras, luvas, batas ou desinfectante (em embalagens de plástico). Aliado ao aumento das embalagens de utilização única para as refeições take away também se tornou habitual o uso de copos de plástico ou papel para o café, ou o aumento dos produtos alimentares embalados em plástico de utilização única.

Esta produção e consumo de plástico teve impactos no clima, como mais poluição atmosférica, emissões de GEE e mais geração de resíduos, nota a AEA, acrescentando que as fortes quedas no preço do petróleo tornaram mais barato produzir plásticos a partir de materiais virgens, de base fóssil, do que reciclar.

Há menos de um mês, o Governo português apelava para o uso de máscaras respiratórias reutilizáveis para reduzir os custos ambientais das descartáveis, que podem representar seis toneladas de plástico a ir parar aos mares todos os meses, só a partir de Portugal.

A secretária de Estado do Ambiente, Inês Santos Costa, dizia que a nível mundial estão a ser usadas “120 mil milhões de máscaras descartáveis todos os meses” e que em Portugal esse número rondará “150 milhões” mensalmente. “Se 1% for depositado incorrectamente [fora dos contentores de lixo indiferenciado], são seis toneladas de plástico a entrar nos nossos solos, rios, ribeiros e no nosso mar todos os meses”, disse.

O ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, insistiu também várias vezes ao longo do ano para o perigo das máscaras descartáveis, e tem vindo a dizer que é absurdo a utilização abusiva de material descartável, de toalhas de barbeiro a copos de café. Avisos no mesmo sentido vieram também da Direcção-Geral da Saúde e de organizações ambientalistas, com a internacional WWF a falar de “um tsunami de resíduos” a caminho dos oceanos.

E se Portugal suspendeu a importação de resíduos até final do ano por prever um aumento dos resíduos descartáveis, devido à covid-19, foi também por causa da pandemia que adiou por seis meses a entrada em vigor da lei que proíbe a loiça de plástico descartável na restauração.

Em termos globais não há ainda números sobre a produção de resíduos em 2020, sendo que dados obtidos pela Lusa indicam que houve um aumento da recolha selectiva. Os dados foram fornecidos à Lusa pela EGF, empresa de tratamento e valorização de resíduos que em Portugal, que com as suas 11 concessionárias, abrange a recolha selectiva de cerca de 60% da população nacional.

No primeiro semestre de 2020 houve um decréscimo de 3% na recolha indiferenciada (resultante de subidas e descidas em vários locais do país) e um aumento de 7% nos resíduos de recolha selectiva, face ao mesmo período de 2019. Na recolha selectiva a empresa que mais subiu foi a Amarsul, que gere os resíduos da península de Setúbal, com um aumento de 36%.

Uma das conclusões, diz a EGF, é que com as famílias em casa e mais pessoas em teletrabalho “há mais resíduos produzidos em casa”. “Sabendo nós que é em casa que as famílias mais separam embalagens para reciclar, este efeito levou a aumentos da produção de resíduos em zonas fora das maiores cidades e um aumento da reciclagem”, explica.

Se a isto se somar um estudo da associação Deco - Defesa do Consumidor, a indicar que os portugueses reduziram substancialmente o desperdício alimentar com a pandemia, ou medidas de protecção ambiental quer do Governo quer da União Europeia — não fossem os descartáveis —, e 2020, com covid-19, até teria sido um ano bom para o planeta.

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