O meu Natal já quase sem velhos

Neste Natal, quero agradecer a todos os que cuidam dos nossos velhos em casa, nos lares, nos hospitais. E também, en passant, ao texto terno e tremendo da Dulce Maria Cardoso.

1. Todos os anos, neste espaço e neste tempo – na semana antes ou depois do Natal –, procuro escrever fora das baias da actualidade, da política europeia ou nacional, das ditas e desditas do nosso quotidiano cidadão. Chegadas essas quadras e sazões, os lampejos e vapores do tempo convidam a um mergulho interior, a uma dissecação das angústias e esperanças mais pessoais, a uma partilha do sangue e da seiva que habitam as nossas “redes não sociais”. Sim, hoje mais do que nunca, precisamos de transitar da malha grossa das redes sociais para o tecido fino das redes pessoais.

Cedo, pelo punho da escrita de Mircea Eliade, ganhei consciência aguda e grave da dualidade entre o sagrado e o profano. Numa espécie de eterno retorno dos afloramentos e das intermitências: os tempos sagrados alternavam com as estações profanas; os lugares profanos definiam os sítios sagrados. Mesmo quando o caminho de uns para outros era gradual e matizado, a verdade é que a distinção clara e nítida estava lá, subsistia, subsiste. Subsiste – aliás, esse é o tópico – nas letras heterodoxas deste texto. Essa “aprendizagem” mais volúvel e fácil dos livros de Eliade, prenhe de descobertas e de dúvidas, não era verdadeiramente surpreendente. Quem havia sido treinado numa formação católica, era a vítima fértil e ideal para a absorção da dualidade entre o profano e o sacro, para a interiorização agostiniana de todas as dualidades. A liturgia católica e até a mitologia cristã – com os seus Midrash, as suas parábolas, as suas narrativas, os seus apocalipses – tornavam muito plásticas e assimiláveis as categorias, as interrogações e as emulações do corte carnal e vivo entre o profano e o sacro. E, por isso, eis-me aqui, no exacto dia em que o meu pai – sempre novo, apesar de velho – perfaria 87 anos. A semana é de tempos sacros e a aplacação das deusas e dos deuses recomenda que não o ignoremos.

2. Falei de novo e velho como quem fala de profano e de sagrado. Sem saber qual deles – o novo ou o velho – é o sagrado ou o profano. Nestas décadas que passaram – e que passando, trespassaram os velhos –, o novo erigiu-se em sagrado e o velho degradou-se em profano. O novo teve o favor dos deuses, o aroma incensado das aras, numa espécie de aura do eterno descartável – descartável assim que deixe de ser novo; descartável assim que passe a ser velho. Enquanto jovem é eterno. E só o jovem pode ser eterno. O velho, os velhos, eram da ordem do efémero, do passageiro, do perecível. Tão perecível que só podia ser profano. Todas as deusas e deuses eram novos, ainda são novos. Só os novos subiam aos altares e só os novos podiam ser sacrificados. O sacrifício não era mais do que isso: o trânsito da dimensão do profano para a ordem do sagrado.

Não sabemos o que a pandemia mudou (ou sequer se mudou). Mas num ápice, os velhos, profanos e perecíveis, passaram a merecer alguma atenção. De repente, descobrimos a multidão de velhos, que sem espaço nem tempo para sacralidades, havíamos escondido. A prima acies – a primeira linha das legiões romanas – apareceu e aparece diariamente na estatística dos mortos. As subsidiarii cohortes – a segunda linha de resguardo – mostrou-se e mostra-se diuturnamente nos lares. No campo de batalha, no meio da campanha, elas intersectam-se e cruzam-se, pois grande parte das mortes ocorreu directamente nos lares. Os lares já não são os deuses ancestrais das famílias e das casas de Roma. Pelo contrário, os lares tornaram-se a casa de todos ou quase todos os que deixaram de ser deusas e deuses.

3. Não há quem não conheça os lares; eles, de uma forma ou de outra, habitam as nossas redes pessoais. Mas, na esfera social e no mundo das redes sociais, eles são discretos, invisíveis, silentes, quase inexistentes. A pandemia, com a sua crueldade de morte e de isolamento, tirou-os do anonimato comunicacional. Temos de olhar para eles, temos de contar com eles, temos de tocar neles. De tocar neles, mesmo em tempo de distanciamento físico e social. Os lares não nos trouxeram apenas os edifícios, as câmaras e as misericórdias, os presidentes, directores e provedores. Não. Os lares – ressuscitados em plena pandemia – devolveram-nos os velhos. Sim, os velhos foram-nos devolvidos com rugas, com artroses, com demências, com doenças. E essa devolução – longe da sofisticação higiénica e anódina de uma encomenda digital – veio com uma súplica, um pedido, um grito. Um grito de humanidade. Não, não são deuses – como aqueles que se incensam nos altares. Mas sim, sim, são mulheres e homens, humanos como todos nós, cinzelados pelo esquecimento próprio e pelo olvido alheio. Há os que vivem sós e abandonados em casa, sem ninguém que os visite e conforte. Há os depositados em lares, para descanso de muitas consciências. Há uma legião deles que vive algures entre a miséria a pobreza, na aflição diária de que o dinheiro, que antes chegava, agora já não chega.

4. Neste Natal, quero agradecer a todos os que cuidam dos nossos velhos em casa, nos lares, nos hospitais. A todas aquelas almas que, pelo país fora, procuram dar uma vida melhor – não um melhor “fim de vida”, mas uma vida mesmo – às nossas velhas e aos nossos velhos. E também, en passant, ao texto terno e tremendo da Dulce Maria Cardoso.

Sem paternalismos e sem ferimento da dignidade adulta e madura de cada qual, carecemos, mais do que nunca, de olddy sitters. Carecemos de descobrir o olddy sitter, atento, respeitador e carinhoso que há em nós. Já quase não tenho velhos para celebrar o Natal. Há dois ou três dias, depois de uma estadia súbita e curta no hospital e diante de uma alta inesperada, tive de ir buscar uma das velhas que me é mais querida e, contra aquela que foi sempre a sua vontade, a entregar ao cuidado de um lar. Por causa da quarentena obrigatória, ali passará, isolada, o Natal e o seu 88.º aniversário. Apesar de saber que está bem, poucas coisas na vida me custaram mais. E à mesa do dia 25, vai doer. Muito.

Sim e Não

SIM Passos Coelho. Oportunidade e sentido do dever numa crítica severa ao Governo, pautada pelo sentido de Estado e pela capacidade de ilustrar o actual vazio estratégico com temas do momento (TAP, SEF, TIMMS).

NÃO Eduardo Cabrita. É incompreensível que se obstine em não se demitir. Mais grave é o dano causado à presidência portuguesa da UE, com o Pacto das Migrações e a Estratégia de Schengen no topo da agenda.

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