Porque Listen foi rejeitado?

Esta rejeição, embora justificada, não deixa de ser uma enorme desilusão para todos nós e um tremendo erro da Academia Portuguesa de Cinema, por não ter tido de imediato em conta as condições de elegibilidade do filme como candidato aos Óscares 2021.

A Academia de Hollywood rejeitou Listen como candidato aos Óscares 2021, e com razão — com muita pena nossa — porque, para além dos regulamentos da Academia de Hollywood, se virmos bem, na sua essência não se trata verdadeiramente de um ‘filme português’.

Nestas alturas de prémios internacionais onde estão portugueses, todos queremos, como se diz, ‘tirar uma casquinha’ de nacionalismo atribuindo tudo a uma espécie de génio português único no mundo, como se houvesse muitos ‘Cristianos Ronaldos’, ’José Mourinhos’ ou agora ‘Migueis Oliveira’ e que eles, de uma forma ou de outra, fizessem parte de nós. Foi talvez essa a lógica da Academia Portuguesa de Cinema e dos seus jurados. Confesso que eu próprio incluí Listen, e com todo o mérito para a sua realizadora, actores e técnicos — e para o incansável produtor português Rodrigo Areias —, na lista dos meus melhores filmes portugueses de 2020. Mas, na verdade, Listen não o é na sua essência.

Vejamos: em primeiro lugar é importante lembrar que o cinema da actualidade, seja distribuído nas salas ou no streaming, é uma indústria global, muito embora Hollywood mantenha ainda o seu poder de mercado. Cada vez é mais difícil distinguir a nacionalidade e a origem dos filmes, mesmo ao nível do cinema de autor, onde cada vez mais a produção de cinema está assente em co-produções internacionais, filmadas por esse mundo fora e apresentadas geralmente nos três grandes festivais: Berlim, Cannes e Veneza. 

Quem assistiu a Listen na apresentação oficial no Festival de Veneza em Setembro passado dava para ver de imediato que não se tratava de um ‘filme português’, para além de este já estar referenciado no catálogo como um ‘produto’, a ser comercializado pela Magnolia Picture International, uma das maiores produtoras e distribuidoras internacionais do chamado cinema independente. Nos 20 anos em que acompanho o Festival de Veneza, e esta edição foi exemplar, acho que nunca vi uma sala — mesmo com as limitações sanitárias — tão cheia e tantas ovações como na apresentação oficial de Listen, na secção paralela Orizzonti. No final da sessão, eu próprio não resisti e disse à Ana Rocha de Sousa e ao Ruben Garcia que o filme ia ser quase de certeza premiado, tal foi a sua recepção. 

O que está em causa nesta desilusão não é nem o talento da Ana Rocha de Sousa e da sua equipa — antes pelo contrário — nem do cinema português, ou dos outros realizadores e actores portugueses que apresentaram filmes em edições anteriores de Veneza. Foram vários premiados, como recentemente Nuno Lopes — Melhor Actor — em São Jorge, de Marco Martins, ou até a boa imagem que deu A Herdade, de Tiago Guedes. A questão está em que Listen é uma produção ‘luso-maioritariamente britânica’ — com a maioria dos técnicos ingleses, rodada nos arredores de Londres, com um elenco português e inglês, encabeçado por Lúcia Moniz, Ruben Garcia e Sophia Myles. Exactamente pelo facto de o filme decorrer em Inglaterra e a sua história que, apesar de universal e sobre um casal de imigrantes portugueses e seus filhos, diz respeito a uma questão de natureza social específica da sociedade britânica e dos serviços de assistência social britânicos — tal como Eu Daniel Blake, de Ken Loach, de quem Listen e a realizadora portuguesa recebem, e bem, fortes influências — obviamente justificava o recurso a diálogos em inglês. Por causa também de uma das crianças-protagonistas, recorre muitas vezes à linguagem gestual e tem menos diálogos em português. Por isso, não respeita o critério de elegibilidade que obriga a que um filme candidato a essa categoria nos Óscares tenha pelo menos 50% dos seus diálogos em língua não-inglesa. Isso era absolutamente claro para quem assistiu ao filme! 

Na verdade, mesmo do ponto de vista estético e artístico, Listen, além de uma primeira obra de Ana Rocha de Sousa, é talvez um caso raro — se fosse totalmente um filme português — já que está assente numa grande novidade narrativa e cinematográfica, muito diferente da maioria dos filmes portugueses. Incluindo até ao nível de todo o processo de produção e de montagem financeira dos filmes portugueses. Não me recordo, aliás, de muitos filmes portugueses em co-produção britânica ou vice-versa. Curiosamente, o filme estreou a 16 de Outubro, na altura da discussão e votação no Parlamento da proposta de lei que transportava para a legislação portuguesa a directiva europeia que regulamenta a actividade dos operadores de televisão e outras plataformas, como as de streaming, e que incentiva igualmente a co-produção internacional

Se, até 2020, nunca nenhum filme coreano havia conquistado a honra de ganhar um Óscar até há pouco tempo intitulado de Melhor Filme em Língua Estrangeira — e não como Melhor Filme Estrangeiro —, apesar de uma forte indústria nacional, Parasitas é todo falado em coreano. Nunca a Academia de Hollywood esteve de costas voltadas para o cinema do oriente ou da Coreia do Sul como está para o cinema português, mesmo havendo Pedro Costa, Luis Urbano ou Manoel de Oliveira, que não teve direito sequer direito a um In Memoriam na cerimónia dos Óscares.

Recordo ainda que todos os anos os países de todo o mundo seleccionam uma obra cinematográfica para representá-los na corrida ao agora intitulado Óscar de Melhor Filme Internacional, que mantém as mesmas regras e regulamentos que a nomenclatura anterior, no que diz respeito ao uso da língua nacional. Portugal tem participado nesta candidatura desde 1980 e, dos 36 filmes já submetidos, é o país que mais vezes competiu nesta categoria sem nunca ter conquistado sequer uma única nomeação ou sequer ter entrado na short-list das potenciais nomeações.

Se, por um lado, Listen é merecedor de todo o nosso reconhecimento público — e da crítica também —, é um facto que beneficiou das condições extraordinárias da pandemia, pois havia poucos filmes prontos a tempo para serem apresentados nos festivais. Isto é, dificilmente uma primeira obra de uma realizadora portuguesa praticamente desconhecida — e fora da caixa dos circuitos habituais dos programadores e curadores de festivais — seria seleccionada mesmo para uma secção paralela do Festival de Veneza. Ou não fosse também o caso de estar por detrás uma produtora inglesa como a Pinball London e um sales agent internacional como a Magnolia Pictures.

Quanto ao sururu à volta da questão dos prémios: Listen venceu ‘seis prémios no Festival de Veneza’, entre os principais Leão do Futuro, para uma primeira obra, e o Prémio Especial do Júri da secção Orizzonti, dedicada precisamente às revelações. Os prémios bem merecidos, efectivamente, ajudam muito na carreira, na promoção e, sobretudo, no impacto que os filmes têm no público. Enfim, sobre este último aspecto não tenho dados sobre as vendas e a carreira internacional do filme. Por cá, efectivamente, os números estão condicionados pela pandemia e pelas limitações de lugares e de abertura das salas de cinema.

Quanto aos prémios, apenas os dois referidos são importantes e são esses que ficarão para a história do filme e do festival. Os restantes prémios, além de paralelos — não oficiais —, são absolutamente irrelevantes, como o Bisato d’Oro, que na verdade favorecem mais quem os outorga — também nessa tentativa de ‘tirar uma casquinha’ ou justificar as benesses de convidado do festival — do que propriamente ao filme em si. De qualquer modo, esta rejeição não deixa de ser uma enorme desilusão para todos nós — mas sobretudo para a realizadora e toda a equipa portuguesa — e um tremendo erro — e estou à vontade para dizê-lo porque sou membro associado — da Academia Portuguesa de Cinema, por não ter tido em conta de imediato as condições de elegibilidade. É algo que também pode vir a marcar a carreira futura de Listen.

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