O coração ainda bate. A chegada

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Chad Madden/Unsplash

Há perguntas que nunca fazemos aos nossos pais. Perguntas que não têm lugar no tempo mesmo que os anos passem e a dúvida se instale preguiçosa sem saber por onde seguir. Eu nunca tinha perguntado aos meus pais quando tínhamos deixado Lisboa. Em que mês, se era dia ou noite. Quando foi. Por que viemos.

Há respostas que são dadas lá atrás e assim ficam imóveis. Nunca mais mexemos no que ouvimos. Como um bibelot esfacelado que nunca mais saiu do sítio mesmo que não se perceba a razão de estar ali.

Foi depois de jantar que liguei ontem à minha mãe e perguntei quando tínhamos saído. “Foi em Dezembro de 1974. No meu dia de anos. A viagem foi longa e chegámos de noite. Nunca mais chegávamos”. Estas palavras ficaram a ecoar na minha cabeça: “Nunca mais chegávamos” talvez porque também elas tardaram a chegar até mim. Passei a noite a imaginar a minha mãe a fazer uma mudança de vida no dia de anos. Para chegar a outra vida. Aquela de que me lembro: a nossa. Enquanto os nossos pais são vivos podemos falar de uma ideia colectiva de existência: a nossa casa, as nossas fotografias, o nosso Natal. Depois, um dia, tudo mudará. A vida, perdoem-me o cliché, é feita de mudanças e nós fizemos a nossa em Dezembro de 1974.

Chegámos àquele lugar onde nada nos esperava mas tínhamos o mar por perto e um pinhal cheio de casas onde facilmente nos perdíamos. Lembro-me de pensar que todas as casas eram bonitas e já na altura tentar imaginar a vida que se desenhava em cada uma delas. As luzes que se acendem numa casa desenham a vida de quem lá dorme.

Não me lembro da primeira noite em que dormi na nova casa, mas agora sei que era o dia de anos da minha mãe. Foi a partir dali, daquela casa, que tive consciência do medo e do perigo, de ver a praia e as mulheres que em manhãs frias arrastavam o sargaço na areia húmida para depois o vender. Há coisas que só passam a existir quando as vemos de perto. Eu sabia lá o que era o sargaço. E quantas vezes dissemos essa palavra? Sar-ga-ço.

O pinhal, cheio de casas bonitas, levava-nos a passeios onde eu abdicava do meu chapéu para o encher de amoras e pinhões. E assim seguíamos, eu, o meu pai e o meu irmão à descoberta do sítio para onde fomos naquele Dezembro. Agora sei que era Dezembro. Como é que demorei tantos anos a fazer esta pergunta?

Passei anos em longos verões naquela praia. Sinto ainda a temperatura do pano listado da barraca que o meu pai alugava o mês inteiro. O pano estava sempre fresco porque as manhãs eram frias. Chegávamos muito cedo quando só ainda havia pegadas das gaivotas e o mar deixava a descoberto o relevo que a água cobre. Saltávamos de rocha em rocha enquanto eu comia o pão com manteiga que também sei a que sabe. Tem o sabor que o passado lhe deu. Era a minha infância. O mar enchia as manhãs de um cheiro intenso que dura até hoje. Como o pano frio das barracas listadas que não nos protegia da humidade certa pela manhã. Era tudo bom, digo-o agora, mas na altura não sabia.

A praia tinha um baloiço junto ao posto do salva-vidas. Agora que penso, nunca mais vi um baloiço numa praia…O que faz um baloiço num areal? Um dia ganhei coragem e fui esperar a minha vez enquanto as crianças se encavalitavam, gritando muito alto para conseguir a sua volta. No meio da agitação distraí-me e o baloiço acrobático apanhou-me em cheio. A areia pingada de sangue fez-me voltar à barraca fria e tive de explicar, com gelo na boca, que não pude andar no baloiço.

Às vezes, as perguntas que não fizemos levam-nos a este lugar da memória. O baloiço foi retirado mas não por minha causa. A praia deu lugar a muitas paixões de verão que duraram até ao ano seguinte, sorvetes que chegavam à areia já derretidos, os olhos marítimos do Miguel onde podiam nadar peixinhos.

Foi só uma pergunta ontem à minha mãe. Era Dezembro, o dia de anos dela. E na resposta descobri outra vez a minha infância.

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