A febre do ouro

Dado o seu percurso extraordinário em Veneza, tendo garantida a distribuição internacional, determinante para uma nomeação aos Óscares, e munida da garantia da Academia de Hollywood de que poderia submeter nova candidatura caso esta fosse recusada, a Academia Portuguesa de Cinema apostou no filme de Ana Rocha de Sousa. Não por leviandade ou desconhecimento das regras, mas confiante de que as características específicas do filme permitiriam a sua aceitação.

Foi com algum desânimo, mas não com total surpresa, que recebemos a notícia de que o filme Listen, primeira obra da realizadora Ana Rocha de Sousa, não terá a oportunidade de tentar trazer para Portugal o tão desejado ouro de Hollywood. A Academy of Motion Picture Arts and Sciences (AMPAS) rejeitou a candidatura com base num dos critérios de elegibilidade que obriga a que pelo menos 50% do filme candidato seja falado em língua não-inglesa.

Antes de quaisquer considerações, recorde-se que este é precisamente um tema que tem vindo a ser debatido pela indústria internacional nos últimos anos, com a mudança do nome oficial da categoria do antiquado Best Foreign Language Film para Best International Film, numa tentativa de trazer maior inclusividade aos Óscares, por muitos criticada pela insuficiência do gesto. Na última edição, a discussão foi reacendida após a rejeição do filme candidato da Nigéria com base no mesmo critério que colocou Listen fora da competição. Enquanto escrevo estas palavras chega-nos a notícia de que o Canadá viu também o seu filme retirado da competição internacional pelos mesmos motivos. ​A pressão para uma maior flexibilidade da Academia norte-americana no que aos critérios de elegibilidade diz respeito tem vindo a aumentar progressivamente de ano para ano.

No que nos diz respeito, foram vários os motivos pelos quais o filme de Ana Rocha de Sousa foi considerado na lista de candidatos nacionais elegíveis e avançámos com a sua candidatura. Ainda na fase de listagem de todos os filmes nacionais estreados no período de elegibilidade imposto pelo regulamento dos prémios americanos, contactámos a AMPAS no sentido de obter esclarecimentos que fundamentassem a decisão de excluir ou incluir o filme, atendendo ao facto de que, tratando-se de uma história indiscutivelmente portuguesa, o recurso à língua inglesa é justificado por retratar a história de um casal imigrante português em Londres, e que uma parte considerável do mesmo tem diálogos em português, em língua gestual e ainda mistos, nos quais ambos os idiomas se alternam, dificultando o apuramento de uma métrica precisa. Em resposta, a AMPAS comunicou que apenas poderiam avaliar em detalhe a elegibilidade de um filme após o encerramento do prazo regular de submissões, existindo, contudo, a possibilidade de submeter um novo candidato caso o primeiro fosse rejeitado. Decidimos, portanto, incluir o filme na lista de candidatos nacionais em consideração.

Dado o seu percurso extraordinário em Veneza, onde arrebatou seis prémios que lhe consagraram uma enorme atenção mediática, tendo garantida a distribuição internacional pelas mãos da grande distribuidora americana Magnolia Pictures​, um dos factores determinantes na possibilidade de obter uma nomeação aos Óscares, e tendo a resposta da AMPAS como garantia de segurança, a Academia Portuguesa de Cinema optou por avançar e submeter o filme à consideração do comité que o nomeou, juntamente com Mosquito, Patrick e Vitalina Varela. Submetidos posteriormente à votação de todos os membros da Academia Portuguesa de Cinema, Listen foi o mais votado.

Assim que a notícia da rejeição do filme foi divulgada, não faltaram reações de surpresa ou indignação, partindo do falso pressuposto de que a decisão de enviar Listen aos Óscares fora tomada sem conhecimento dos regulamentos, ou de forma leviana. Nada mais longe da verdade. Por muito que custe relembrá-lo, e com todos os méritos que o cinema português tem alcançado a nível internacional, que tanto nos orgulham e prestigiam, a verdade é que somos ainda o único país do mundo detentor do recorde do maior número de candidaturas aos Óscares sem uma única nomeação. Arriscámos, confiantes de que as características específicas do filme constituíam fundamento suficiente para a sua aceitação, mas seguros de que uma eventual rejeição poderia ser rapidamente solucionada com o envio de outro filme.

A seleção do candidato oficial aos Óscares desencadeia sempre as mais diversas reações, desde os anos em que não existia ainda uma Academia de Cinema em Portugal. É algo que acontece todos os anos, em todos os países que concorrem aos Óscares, e é absolutamente normal que assim seja, precisamente porque o cinema é e deve continuar a ser uma forma de arte livre e democrática, diverso na forma de ser feito e visto.

Em 2012, um ano após a sua fundação, a Academia Portuguesa de Cinema foi legitimada pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual para assumir o processo de seleção dos candidatos nacionais aos Óscares, visto que anteriormente não existia em Portugal (ao contrário da esmagadora maioria de países com produção cinematográfica) uma academia que reunisse os profissionais do sector de forma transversal numa associação, cuja missão é não só a de promover e celebrar a cinematografia nacional, como de lutar pela aproximação do público português ao seu cinema.

Caminhando para o seu décimo aniversário, a Academia conta com 874 membros e procura, de ano para ano, representar o sector de uma forma cada vez mais abrangente, apelando assim a uma maior participação e diversidade de pontos de vista. Nos últimos anos, foram enviados à consideração dos Óscares filmes de autores tão diversos como João Canijo, Miguel Gomes, Ivo M. Ferreira, Marco Martins ou João Botelho​, para citar apenas alguns. E, como seria expectável, todos os anos surgem críticas e vozes discordantes. A competitividade e iniciativas de campanha devem ser encaradas como algo saudável que incentiva os profissionais do meio a um maior esforço em promover o seu trabalho e que, em última instância, acaba por ter o benefício de suscitar um maior interesse junto do público sobre as obras em consideração.

Neste momento, estamos a proceder a uma votação relâmpago, para a qual apelámos à participação dos membros da Academia e temos três excelentes candidatos que mostram a inquestionável vitalidade e diversidade do Cinema Português: Mosquito, de João Nuno Pinto, candidato de Portugal à categoria de Melhor Filme Ibero-Americano aos Goya 2021 e vencedor do Prémio da Crítica para Melhor Filme Internacional na Mostra de São Paulo; Patrick, a estreia na realização de Gonçalo Waddington que abriu o Festival Internacional de San Sebastián; e Vitalina Varela, de Pedro Costa, nome maior do cinema português, vencedor do Leopardo de Ouro em Locarno e com um percurso admirável no circuito de festivais internacionais.

Tal como todos os anos, ficaremos a torcer pelo candidato escolhido democraticamente entre os membros da Academia, na esperança de nos livrarmos do único recorde do qual o cinema português não se pode orgulhar.

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