As canções portuguesas que salvaram 2020

Desde Março que o discurso público é monopolizado por um único tema a que não podemos escapar. A arte, que entre muitos condões tem o de nos conseguir fazer abstrair do presente, foi a nossa salvação em 2020. Foi um ano horrível e seria muito pior sem estas canções, que não têm culpa da altura em que nasceram. Vamos dar-lhes uma segunda oportunidade?

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Spicy Noodles, Sensacional!

“Lá no trabalho ele empilha tijolos mas assim que viram prédios ele não pode entrar.” Esta é a moral da história precária de José Francisco, cantada pela dupla luso-brasileira Érika Machado e Filipa Bastos. O álbum Sensacional! é um conjunto de frustrações quotidianas que esbarram na esperança e nas melodias coloridas das Spicy Noodles, com guitarra e teclado a saber a algodão doce.

O disco foi refeito a partir do zero depois de lhes ter sido roubado o material onde guardavam todo o trabalho, já avançado. 2020 também lhes roubou a oportunidade de viajar pelo país com o selo de banda revelação que tão bem lhes assentaria. Mas a Filipa e a Érika saberão melhor do que ninguém como construir tudo de novo.

Capicua, Madrepérola

O último trabalho da Capicua também viu a luz do dia ainda no antigo normal, mas a pandemia atropelou muito do que de bom e grande pode vir depois de um lançamento destes. Não nos surpreende já a capacidade de escrita da Ana Matos Fernandes, mas Madrepérola concentra uma tensão forte entre sensibilidade e força (foi criado durante a gravidez) que deixou os sentidos à flor da pele: saiu tudo cá para fora, sem tropeções, num misto delicioso de crueza, raiva e ternura (facilitada também por convidadas como Catarina Salinas e Mallu Magalhães). É muito íntimo, mas simultaneamente universal e não menos político do que Medusa ou Sereia Louca.

B Fachada, Rapazes e Raposas

Rapazes e Raposas é uma volta olímpica pela discografia de B Fachada, com a boa notícia do regresso da viola braguesa e da canção redonda, formato interrompido pelos últimos anos de viagens experimentais e outros delírios. Em boa hora nos ofereceu uma pausa do seu retiro.

Voltamos a ouvir trechos delicados (belo momento paternal em Trad Mosh) a fazer lembrar um início em que o conhecíamos pela sensibilidade, mas também a faca afiada e as bocas grotescas de um artista verdadeiramente desalinhado, disposto a ser o mau da fita, como quando denuncia os Lambe-Cus. B Fachada apresenta-se com a confiança de quem não quer mesmo saber o que achamos dele. Agradecemos-lhe esse desdém, que lhe permite desbravar sempre novos caminhos.

Samuel Úria, Canções do Pós-Guerra

Se o espectro costuma estender-se das baladas mais finas ao punk rock transpirado, parece justo dizer que Canções do Pós-Guerra se inclina para o lado meigo. Pesam nessa balança Cedo (entrelaçando a voz com Monday), Menina e Muro, uma das mais doces que o músico já nos trouxe, onde eterniza a expressão “resguardo beirão”.

Os truques de Samuel Úria não são de digestão rápida. Canções do Pós-Guerra não é só a acalmia depois de um qualquer caos e Aos Pós, mais eléctrica, é a que me tem inquietado mais: parece uma provocação irónica sobre a influência que achamos ter no mundo e na história (“Somos pós do pós do pós-pós-modernos, só pós”), particularmente agora que nos dedicamos ao aparato do activismo digital, orgulhosos por termos “todos a marca de água das revoluções”, mas no fundo seremos só “mais do mesmo e pais do que calhar”.

Clã, Véspera

O mundo e o país podem contorcer-se, a terra pode tremer. Os Clã continuarão a fazer o mesmo: a atirar-se para cada disco como quem vai fazer o melhor da carreira. E resulta invariavelmente: ficam todos igualados no topo do topo. Véspera é mais um desfile de singles em potência, dançantes, sobre amor, sobre carne, sobre a bênção que é a energia da Manuela Azevedo. Só podemos sorrir perante Jogos Florais, que dá um salto a 1997 e coloca “o que penso por extenso” para resolver, enfim, o Problema de Expressão. Tudo no Amor antecipou-se ao disco e já é de 2019, mas também vem muito a tempo de salvar este ano.

Benjamim, Vias de Extinção

Vias de Extinção tem uma roupagem mais musculada, graças ao novo protagonismo dos sintetizadores, piano e baixo, e o concerto de apresentação no Maria Matos foi uma pista de dança sempre em vias de explosão, apenas contida pelas circunstâncias. Para já, merece ser ouvido numas colunas que revelem o todo o groove criado pelo compositor, produtor e engenheiro de som. Não é um disco festivo ou sequer alegre (o próprio fala numa “crise dos 30”), só que converte a desilusão em vertigem e a dor em exaltação. Uma exaltação muito dançável.

Incógnito, Ângulo Morto e Urgência Central deixam-nos ansiosamente à espera de multidões em espaços exíguos, de preferência com bola de espelhos, para nos espalharmos todos ao comprido com a mesma classe com que consegue fazer o Benjamim.

Miguel Araújo, A Incrível História de Gabriela de Jesus

Miguel Araújo não lançou álbum este ano, mas brindou-nos com lengalengas musicadas. Gabriela de Jesus foi abandonada nas traseiras da igreja em Lourizela, andou aos trambolhões pelo país (Estarreja, Sanfins, Gouveia, Cacém...) e atingiu o estrelato na América, onde também desagua todo o imaginário do músico do Porto. Tudo movido a rimas e aliterações.

Também com a América na cabeça, mas com os pés em Boticas, gravou com António Zambujo uma ode a essa instituição rural que é O Dia da Procissão.

A Música Cigana a Gostar Dela Própria

Tem-se falado muito sobre números que descrevem a comunidade cigana, ora benevolentes ora acusatórios. Mas este projecto d’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria não é sobre matemática distante: é concreto, mostra caras, pessoas, sentimentos. E reconhecer o outro é um grande contributo para promover a empatia e travar bacoradas.

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