Só quem se queima é que acaba queimado

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Ganhámos um pouco de liberdade. Com ele [Zine al-Abidine Ben Ali] não podíamos falar. Mas será que isso afecta a minha vida? Eu quero liberdade e dignidade. Posso ter as duas?” Aisha Qurashi, vendedora de pão tunisina

Aos heróis imolados queima-os a memória

Mohammed Bouazizi não se imolou por heroísmo. Do seu corpo tocado a fogo libertou-se mais um último desespero indignado do que o sinal para o início da revolta. Sem nada mais para enfrentar a injustiça que a sua vida, o vendedor de fruta, cansado das multas e mais ainda da arbitrariedade, decidiu cravar o último suspiro no peito da brutalidade corrupta instituída pelo Estado da Tunísia. Mas mesmo que ele tenha perecido em chamas, não foi ele que acendeu o rastilho da Primavera Árabe, quanto muito serviu de espoleta a uma granada que desatou revoluções e acabou por rebentar no colo de quem a atirou. Uma década depois do seu gesto de herói romântico, Bouazizi, o herói popular, usado como inspiração para ousar, está hoje transformado para muitos no bode expiatório dos fracassos posteriores. E muitos dos que veneraram a sua morte como símbolo revolucionário vilipendiam agora a sua campa porque do seu desespero em cinzas não emergiu a fénix de prosperidade e harmonia que muitos sonharam ser possível. “Que seja amaldiçoado”, afirma ao Guardian Fathiya Iman, de 54 anos, frente à gigante fotografia de Bouazizi na principal rua de Sidi Bouzid. “Quero deitá-lo abaixo. Foi ele que nos arruinou”. Os pobres e desesperados seguem hoje tão pobres e ainda mais desesperados porque antes não sabiam o que era esperança e agora sabem que a perderam para sempre. E o cadáver de Mohammed Bouazizi já não cheira a flores.

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Angus McDowall/REUTERS

Dois olhos

Gustavo Gatica ficou cego às mãos da polícia chilena. A 8 de Novembro de 2019 o estudante de Psicologia de 21 anos foi atingido nos dois olhos por disparos dos agentes da polícia de choque e pagou caro pela ousadia de protestar contra um Governo pejado por herdeiros da ditadura de Pinochet. Em Março, quatro meses depois de perder a vista, Gustavo Gatica estava na mesma praça onde foi atingido, e rebaptizada pelos manifestantes como Praça Dignidade, para prosseguir a luta: “Dei os meus olhos para que as pessoas acordem”, afirma, citado pela Amnistia Internacional. Roberto Saviano, o jornalista e escritor italiano, autor de Gomorra, falou do caso esta semana na RAI e no Twitter: “Gustavo Gatica perdeu a vista às mãos da polícia por pedir dignidade e igualdade. Quando falamos de direitos básicos não há outra forma de os afirmar do que comprometer-se completamente”. Pouco interessado em ser incensado como mártir, nem que o coloquem num pedestal qualquer, Gatica dizia em Agosto à BBC: “Não foi algo que procurei. Não queria ser um ícone, mas para muita gente, talvez o seja. É estranho.” Continua a ir aos protestos, mas prefere ser mais um entre a multidão e tem recusado os convites para encabeçar as marchas de gente, porque não quer ser representante das lutas sociais nem o seu porta-voz. Como sublinha Saviano, “não há dignidade maior que defender a ideia da liberdade e os próprios direitos”. O resto são relações públicas.

O salário não pode ser a última parcela

Na Colômbia, onde o Governo conservador parece mais propenso a ouvir a lamúria do empresariado que a sentir as mágoas do trabalhador, mesmo com todo o aumento do custo de vida, os patrões defendem que por causa da conjuntura de crise pandémica só aceitam uma subida de 2% do salário mínimo. Um unanimismo pequenino apenas quebrado por Christian Daes, conhecido e poderoso dono da Tecnoglass, empresa de vidro e alumínio decorativo de Barranquilla. Com um simples e irónico tweet provocou ondas de choque no país: “A minha resposta ao aumento de 2% do salário mínimo: Grandes tomates”. “Não é a primeira vez que o empresário de Barranquilla contradiz a classe dirigente do país sobre o pagamento de salários aos trabalhadores e com argumentos de peso sustenta que o aumento deve situar-se entre 4,5 e 6%”, escreve o colunista Orlando Andrade Gallardo no diário La Libertad. Para o patrão da Tecnoglass “se uma empresa não consegue subir os salários pelo menos 5% é melhor fechar”. À rádio W, Daes criticou quem não olha à sua volta e só pensa em si próprio: “Esquecem-se os meus colegas empresários de ver a parte humana e ver como as pessoas estão a passar fome na rua.” Com umas contas simples, Christian Daes demonstra que o salário mínimo mal dá para alimentar duas pessoas a viver numa barraca. “Não estou de acordo que o único barato que tenhamos no país seja a mão-de-obra”, disse. Com uma taxa de desemprego em alta e que o FMI prevê que supere 17% até ao final do ano, o patrão – que não precisa de ser colombiano porque o mesmo se repete nos quatro cantos do mundo – soma custos guardando para o fim a alínea dos salários e depois oferece o valor mais baixo possível, contando que o desespero leve sempre alguém a aceitar essa indignidade.

A indignidade é uma prisão indiana

A tortura é comum nas prisões indianas. Além de o Estado privar o cidadão condenado da sua liberdade, também lhe despe a dignidade e lhe recusa os direitos mais elementares. Se “a qualidade da democracia é testada nas prisões”, como escreve Kaleeswaram Raj no The New Indian Express, então o estado da democracia indiana deixa muito a desejar. Com o autoritarismo do Governo nacionalista de Narendra Modi a não descansar de perseguir os seus mais críticos nem mesmo no meio da pandemia, os presos políticos chegam a sofrer nas cadeias tratamentos mais humilhantes que os presos comuns. “Enquanto o mundo multiplica os esforços para minimizar o impacto do novo coronavírus (covid-19) e proteger toda a gente, o Governo da Índia continua a repressão” dos seus críticos, denuncia a Amnistia Internacional, que diz que os presos políticos “estão a ser enviados para prisões sobrelotadas”, arriscando-se a ser infectados. “Nas democracias ditatoriais protestar é quase um crime político”, refere o cronista indiano, por isso, “para muitos activistas, a prisão passou a ser o novo normal e a fiança uma excepção incerta”. O jesuíta Stan Swamy, conhecido activista pelos direitos humanos, foi preso em Outubro, tornando-se o mais idoso acusado de terrorismo na Índia. Na prisão, o padre, incapaz de segurar um copo por sofrer de Parkinson, teve de ser salvo por palhinhas que lhe enviou um grupo de advogados. “Somos forçados a pensar que hoje na Índia a dignidade individual está em crise profunda. Como disse o juiz Krishna Iyer, a ‘dissuasão brutal’ poderia, por si só, ser considerada um ‘crime punível’ que o Estado continua a cometer”, conclui Raj.

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