Num instantinho, vou e volto para ver o Pai Natal

O leitor Luis Robalo conta uma viagem sonhada a Rovaniemi, na Finlândia. “Quero mesmo ir à Lapónia, e sinto mesmo que estou lá”.

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Rui Gaudêncio

Saio, seriam umas 23h12 quando fez efeito o comprimido e já no nível de sono profundo voei, é esse o termo correcto, até à terra do Pai Natal.

Voei pelos meus próprios meios, bati ritmadamente asas que não tenho mas no cenário onírico em que a acção se passa podemos ter asas se assim quisermos, assim como podemos dar passos com mais de dez metros cada um.

Não vem o Pai Natal até nós, vamos nós até ele. Não seja por isso. Queremos prendas, temos direito a elas, portámo-nos lindamente, aceitámos tudo o que os adultos nos disseram. Quedámo-nos, calámo-nos, confinámo-nos. Se há Natal em que merecemos prendas, e das boas, é este.

Não há renas nem trenó, vamos nós, montados seja no que for. O que é preciso é chegar. E se já fomos à Índia e voltámos, porque não havemos de ir a uma terra na Lapónia, no Círculo Polar Árctico, que só por se anunciar assim já parece suficientemente fria, inóspita e deserta, mas não, tem sessenta mil habitantes e é um dos centros comerciais mais setentrionais do planeta. Não deixa, no entanto, de ser fria e inóspita. Rovaniemi é o nome.

Vamos visitar o Pai Natal e reivindicar o nosso quinhão de felicidade embrulhada em papel com enfeites. Queremos uma fotografia ao colo, queremos brincar com os gnomos que não se vêem em parte nenhuma durante o ano inteiro e são maneirinhos; queremos conhecer a fábrica dos brinquedos; queremos montar nas renas e degustá-las; e podemos fazer tudo isso em segurança: se a nova vacina do bicho o mantém em sentido aos 70 graus negativos, com 40 deles, está pelo menos atordoado, e podemos tranquilamente passear de um lado para o outro, na Lapónia que dizem ser tão linda, de boca ao leu, sem mascarilha nem nada. Nuzinhos como fomos deitados ao mundo.

Vamos já, não haja enganos no caminho, para chegar a tempo da comemoração, enquanto eles nos deixam passar. Na volta, voltamos quando tivermos que voltar. Não importa. Eles aceitam-nos sempre de volta e se não nos deixarem viajar, felizes na mesma: temos vodka e as prendinhas.

Isto é uma imposição estranha que me coloca o sonho: tenho um sentimento constante de culpa, de pecado, e sinto nas minhas costas, para além das asas que não tenho, um coro de polícias de costumes, prontos a encarcerarem a minha ambição de ver o Pai Natal e poder voltar para casa investido do cumprimento do dever.

Quando chego é uma desilusão: o Pai Natal só fala lapão, as renas conseguem ser tão apoucadas como as ovelhas. Não interagimos nada e a carne não é assim tão boa. Os gnomos, seres que eu ainda ambicionava mais conhecer que o Pai Natal, são homúnculos estridentes e zaragateiros e não se pode estar com eles cinco minutos.

Rovaniemi é um sítio e não sei mesmo se não será um cenário montado nesta época do ano para os abonados levarem os filhos que tratam por “você” para não haver confianças e os sonhos que lhes pagam serem sintéticos e assépticos.

Quero mesmo ir à Lapónia, e sinto mesmo que estou lá, e mesmo que a aurora boreal seja um episódio psicadélico após uma degustação abusiva de cogumelos finlandeses e o dito do licor invisível, sem cor nem sabor, não faz mal: é um espectáculo lindo, mesmo na minha cabeça.

São sete e meia da manhã, afinal acordo sem saber onde estou, com o som histriónico de humoristas de pacotilha, nivelar mais baixinho é impossível, que animam essa estação de rádio que não sei porquê persisto em deixar sintonizada e todos os dias de manhã tenho a mesma vontade de os vernaculizar e depois levanto-me e sigo a minha vida.

Gosto tanto do Natal, com ou sem ajuntamentos.

Luis Robalo

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