Travemos a segunda vaga de rendas excessivas

Esta é uma história de atrevimento e desplante, criada nos gabinetes da EDP, escrita pela pluma do ex-secretário de Estado Artur Trindade e paga por si, na fatura da luz, a partir de 2021.

É provável que o debate parlamentar desta quinta-feira escape aos holofotes, entre constatações de aridez ou complexidade técnica. Começo então por resumir a motivação do Bloco: poupar os consumidores de eletricidade à cobrança ilegítima de 700 a 1000 milhões de euros. É uma das maiores borlas alguma vez oferecidas aos produtores de eletricidade em Portugal. E trata-se de cumprir a recomendação aprovada pela Comissão de Inquérito às rendas excessivas na eletricidade. Esta é uma história de atrevimento e desplante, criada nos gabinetes da EDP, escrita pela pluma do ex-secretário de Estado Artur Trindade e paga por si, na fatura da luz, a partir de 2021. 

Do atrevimento ao desplante

O memorando com a troika, assinado em 2011, impunha um aumento da taxa de IVA sobre a eletricidade. Poderia ter subido para a taxa intermédia, de 13%, mas o governo PSD/CDS preferiu um aumento direto de 6% para 23%. A mitigação destes aumentos históricos acabou por tornar-se um bom pretexto para medidas extraordinárias. A EDP sugeriu várias, entre elas a obtenção de receita pelo sistema elétrico através da venda antecipada, aos produtores eólicos, de um prolongamento das rendas garantidas para além dos 15 anos de produção já previstos na lei. 

O secretário de Estado da Energia, Henrique Gomes, rejeitou a proposta da EDP. Mas o afastamento do governante permitiu que ela avançasse, já pela mão de Artur Trindade, que a desenhou detalhadamente com as empresas eólicas. 

Simplificando: a maior parte da produção eólica em Portugal resulta de investimentos privados feitos sob a lei de 2005, que previa o pagamento de uma tarifa fixa por toda a eletricidade produzida ao longo de 15 anos. Essa tarifa fixa seria reduzida, nos cinco anos seguintes, ao valor verificado nos novos concursos para produção eólica (já com custos tecnológicos muito mais baixos). 

Para evitar esse risco, os produtores passaram a poder comprar uma garantia de tarifa mais elevada a partir de 2021 (por cinco a sete anos e para um número mais alargado de empresas), fazendo, em troca, uma “contribuição voluntária para a sustentabilidade do Sistema Elétrico Nacional”. Assim, os produtores eólicos, já isentos do pagamento da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético, ainda conseguiram ser remunerados pela sua “contribuição voluntária”. O atrevimento tornou-se desplante.

700 a 1000 milhões de perdas para os consumidores

A Comissão Parlamentar de Inquérito estudou a fundo os regimes de 2005 e 2013, comparando-os na ótica dos consumidores. As conclusões aprovadas são alarmantes. A partir de 2021, logo no primeiro ano de extensão da garantia, as elétricas recuperarão quase tudo o que pagaram ao sistema entre 2013 e 2020. E por mais seis anos acumularão as vantagens desta espécie de negócio. Os consumidores, esses, perdem entre 700 e 1000 milhões de euros, valores estimados a partir dos resultados de recentes leilões eólicos onshore na Europa mediterrânica e das previsões oficiais para os preços do mercado elétrico.

Aterrada, a CPI recomendou (com votos contra do PSD e CDS) que o Governo anulasse este processo e negociasse a devolução às empresas, com juros, dos valores pagos. O regresso ao regime remuneratório de 2005 restauraria o quadro dos concursos e ninguém poderia queixar-se de contratos rasgados e alteração de condições. Ao invés, este jackpot às elétricas significa uma frustração de expectativas para a economia e para os consumidores, a quem os altos custos com as renováveis foram sempre apresentados como forma de, a prazo, fazer baixar a fatura. 

Face às conclusões da CPI, os produtores recusaram de imediato qualquer negociação, iniciando as rituais ameaças de litigância contra o Estado. Sem horizonte negocial, cabe agora ao Parlamento legislar. Se for pessoa de bem, agradecerá a “contribuição voluntária” dos produtores e devolverá o presente envenenado, em nome do interesse público.

Apesar de aprovada pelos deputados do PS na CPI, a possibilidade de reposição das regras iniciais de remuneração tem sido violentamente atacada pelo Governo. E só depois da constituição de Artur Trindade como arguido no caso EDP se ouviu o secretário de Estado da Energia, João Galamba, prometer “avaliar a viabilidade financeira” da revogação do decreto-lei 35/2013. As contas estão feitas e publicadas. Falta só a coragem.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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