Luísa Castel-Branco: “Do ‘orgulhosamente sós’ passámos para um país pequenino no meio de tubarões”

Aos 66 anos, a jornalista foi desafiada a escrever as suas memórias. A trilogia começa com uma infância passada entre as férias no campo e a cidade, as dificuldades na escola e uma educação rígida num Portugal pobre e fechado.

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"Quando os filhos vivem num micro mundo é importante saberem que a dois passos existe uma realidade completamente diferente" Filipa Fernandez

A sua última aparição na televisão deu-se já em plena pandemia. Luísa Castel-Branco despediu-se dos espectadores que a acompanhavam no programa Passadeira Vermelha, na SIC Caras, onde esteve sete anos a comentar a vida de celebridades. É uma doente de risco porque tem uma doença auto-imune e outra associada, por isso a família tem evitado as visitas. “Eu estou a perder o crescimento dos meus netos. É horrível”, confessa. Ainda não sabe como vai ser o seu Natal.

Teve três filhos, tem sete netos e a sua vida é sobejamente conhecida, sobretudo dos leitores da imprensa cor-de-rosa. A antiga jornalista, que começou a carreira no extinto Semanário e fez parte da equipa fundadora da revista Máxima, tornou-se conhecida quando chegou à televisão, já depois dos 40 anos. Pelo caminho passou pela assessoria política, escreveu mais de uma dezena de livros, todos de ficção. Acredita que a sua vida dava um livro. Mais: uma trilogia, a ser publicada em três anos. Quando eu era pequenina pensamentos e emoções sobre a infância e a memória é o primeiro, no qual a autora recorda a infância, em pleno Estado Novo.

Luísa Castel-Branco partilha histórias, algumas que os filhos conhecem, e confessa, a rir, que quando eles eram pequenos perguntavam-lhe se no seu tempo “já havia carros ou ainda se andava a cavalo”, tal era a incredulidade com que ouviam a mãe. “Resiliência” é a palavra que, para a autora, resume o que foi nascer e crescer numa época em que ser canhota e disléxica era um castigo, em que os pais eram rígidos e demasiado críticos. As palavras duras, o desamor, os castigos e as orelhas de burro marcaram-na. “O livro tem momentos felizes e outros menos felizes... É a vida”, resume ao PÚBLICO, em entrevista na pastelaria onde todos a conhecem. A meio, somos interrompidas por um senhor que se abeira da mesa para a cumprimentar. Quer agradecer o apoio e a alegria que Luísa e os filhos deram aos seus pais, vizinhos de há muitos anos, numa rua ali perto, deixando a autora em lágrimas. “O gratificante de quando se é mãe é olhar para os filhos e vê-los fazer o que lhes ensinamos.”

As suas memórias são para partilhar só com leitoras?
Sim, são raros os leitores homens. Acho que há uma escrita masculina e uma feminina e a minha é muito feminina. Mesmo os meus livros de ficção são femininos. Há um tipo de homem que talvez se interesse pelo relato que faço de como era a vida há 50 anos, mas é um relato de rapariga. Este livro tem dois tipos de leitoras: por um lado, quem nasceu por volta do 25 de Abril [de 1974], para quem aquele é um mundo completamente diferente... As pessoas ficam espantadas.

Não acha que só fica espantado quem nunca ouviu as histórias dos seus avós?
Mas há muita gente que já não tem avós. Esse é o problema da cidade, o afastamento que há em relação à família que fica no campo.

E as outras leitoras?
São da minha geração. Pessoas que cresceram naquele tempo. Por exemplo, tenho uma amiga alentejana que me confessou que achou engraçado que em Lisboa fosse como no Alentejo profundo, porque ela tinha a noção que em Lisboa era tudo melhor e descobriu que não era assim. Portanto, do ponto de vista sociológico, é muito interessante olhar para o Portugal daquele tempo.

Sente saudades desse Portugal?
É impossível ter saudades de uma realidade que, desde muito pequena, percebi que não era boa. A pobreza era muito grande. Não se pode ter saudades disso. O facto de sair do colégio com mais duas amigas e aparecer um senhor, que ninguém equacionava quem era, a mandar dispersar... Não se pode ter saudades. Mesmo quem viveu afastado da causa política, essa sombra estava lá sempre. Lembro-me que fui suspensa porque houve uma aluna que fez queixa de mim porque falei da Constituição, porque falava de coisas proibidas. O extraordinário é que foi uma jovem da minha idade que fez queixa.

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"Deste livro saem duas ideias, a resiliência, que é uma coisa extraordinária, e o sonho. É muito importante sonhar" Filipa Fernandez

Refere a pobreza, mas teve uma vida privilegiada.
Sim, em todos os aspectos menos na falta de amor, que era gritante. Ainda que naquele tempo fosse pouco normal demonstrar afectividade, no meu caso foi um pouco mais complicado. Sempre tive um olhar para quem tinha menos, procurava ajudar, etc., mas a importância de os meus pais falarem sobre isso — eu fiz o mesmo com os meus filhos —, das dificuldades que eles passaram, isso marcou-me profundamente.

O que lhe contavam?
Quando o meu pai conheceu a minha mãe, ela era arrumadora de cinema, uma profissão que desapareceu, eu nunca consegui ir ao cinema sem dar uma boa gorjeta à arrumadora. A grande diferença é que hoje em dia as pessoas dizem: “Eu não faço esse trabalho, que sou demasiado qualificado.” Antigamente — e aí sim, tenho saudades — as pessoas tinham orgulho no que faziam, fosse o que fosse e em momento algum passaria pela cabeça ficar em casa dos pais, ser um peso. O meu primeiro trabalho foi ser empregada de balcão, a minha mãe mandava o chauffeur buscar-me e ficava-me com o dinheiro. Foi uma revolta... Mas também fiz o mesmo com os meus filhos. 

Porquê?
Isso é muito importante. Quando os filhos vivem num micromundo é importante saberem que a dois passos existe uma realidade completamente diferente. Eles todos serviram à mesa. Só não lhes fiquei com o ordenado. Nunca! Tenho a certeza que nenhum será alguma vez mal-educado para um empregado de mesa. Costumo dizer que é muito fácil ver a educação de alguém na sua relação com a senhora da limpeza. É fundamental respeitar as pessoas. Tenho um amigo que diz que eu sou uma pessoa de direita com complexos de esquerda. (Risos) Mas essa divisão esquerda/direita, para mim, não faz qualquer sentido. 

Não há diferenças?
Não há. Há pessoas boas em ambos os lados. 

Mas diferenças não estarão naquilo que defendem, na ideologia?
Mas a ideologia é extremamente flexível. Hoje em dia, vamos esticando, esticando e, às tantas, onde é que começa e acaba? No fim de contas, os partidos têm de fazer acordos que não têm a ver com a sua ideologia. Obviamente que há coisas que dificilmente consigo engolir, se no programa dos partidos estiverem coisas que são contra os meus princípios de vida... Eu tive a imensa sorte de trabalhar na assessoria política e, das coisas que mais me revolta, seja em que governo for, é ouvir pessoas que dizem que não trabalham com este ou aquele por causa do partido. Hoje em dia, creio que veio com a crise e com a troika, as pessoas têm muita dificuldade em conversar sobre política sem extremarem posições. Isso é muito triste porque eu sou do tempo em que se tinha ultrapassado isso. A seguir ao 25 de Novembro [de 1975], saboreávamos a liberdade. Tive a sorte de trabalhar quando o plenário da Assembleia da República era... [Luísa faz um ar de deslumbramento] Agora ouço um bocadinho do debate e tenho vergonha da pobreza do discurso, até do uso do português. Eu conheci grandes tribunos. Ali está o espelho da nação. Há certas coisas que o progresso não melhorou.

A questão não será, com a democracia e o aumento da escolaridade, chegaram ao Parlamento pessoas que foram as primeiras a licenciar-se nas suas famílias? Ou seja, pessoas que antes do 25 de Abril não teriam essa oportunidade?
Isso é uma explicação plausível mas, para mim, não verdadeira. Isso é verdade, mas são pessoas que se desenraizaram. Atravessei o país várias vezes, em presidências abertas, e há uma coisa que garanto: as pessoas são educadas, prestáveis e não são subservientes. Há uma vontade de ajudar genuína. Isto muda quando vêm viver para os subúrbios das grandes cidades. Aí, já não querem ser iguais ao que foram os seus pais. É verdade que a sociedade se abriu a pessoas que quiseram estudar, mas depois estas — que têm o que os pais nunca tiveram (nem tiveram necessidade de ter) , viveram o boom económico e viram serem criadas necessidades fictícias. 

Que se reflectem na educação dos filhos?
Sim, a partir daí o papel dos pais é dar aos filhos aquilo que nunca tiveram. Há uma geração que cresce sem a noção de que, além de direitos, tem deveres. Essa geração aos 30 e muitos anos ainda está em casa dos pais, não consegue emprego para o curso que tirou e, acima de tudo, não foi ensinada. O corte com a terra, o corte inclusive com a morte — os jovens caminham de frustração em frustração, já têm o melhor telemóvel, o melhor computador, etc. , e depois a vida é uma desilusão. Porque a vida, efectivamente, é muito difícil. É preciso lutar. E a maior parte das pessoas não ensina isso aos filhos. Depois há uma minoria, quem tem dinheiro há muitas gerações, que é forreta e os filhos estão habituados a ir trabalhar, desde cedo, e vingam.

Esta desertificação de Portugal e a criação dos subúrbios alterou profundamente aquilo que era o país. Obviamente que se deu hipótese a quem nunca poderia estudar, mas quem é que aproveita isso? Às vezes penso que, 40 e tantos anos depois da revolução, ainda somos muito embrionários, ainda temos muito que aprender. Do “orgulhosamente sós” passamos para um país pequenino no meio de tubarões. 

Afinal tem saudades do antigamente?
Não. Tenho saudades da inocência da terra, da inocência das crianças. Do resto não. Por exemplo, a ideia de me subjugar a um homem, não. Ainda hoje, aos 66 anos, é-me completamente impensável. E tudo o resto, por exemplo, a questão de uma mulher não poder abrir uma conta bancária, não poder viajar. Nós éramos cidadãs de terceira! O que me enerva é as pessoas acharem que isto que temos hoje é garantido, por isso, não vão votar. Isso tira-me do sério. Quando vejo mulheres negligenciarem o que têm... As pessoas têm horror quando eu digo que sou feminista.

Porque não se pode ser de direita e feminista?
Mas eu não sou de direita. Ou melhor, eu pergunto: o que é ser de direita? Onde é que eu vou votar? Não tenho onde votar... Sou feminista e tenho de explicar porque ainda hoje é uma palavra controversa. Mas nós vivemos num país onde se faz excisão às meninas, onde as mulheres ganham menos do que os homens, onde elas morrem [vítimas de violência doméstica] porque o GNR é amigo do marido. 

Falou há pouco da falta de amor. Continua a sentir esse reflexo na sua vida?
A infância marca-nos para o resto da vida. Marca-nos pelas carências que tivemos, pela forma como vemos o mundo. Foi uma chaga aberta a vida inteira. Este livro foi uma catarse enorme — a minha mãe morreu já em tempo de covid [em Julho] —, e fez-me compreender que cada um faz o melhor que pode...

Ou seja, quem viveu uma situação semelhante à que descreve no livro, só quando chegar à sua idade é que vai conseguir perdoar?
(Pausa) Eu com este livro consegui. Não estou a dizer da boca para fora porque este livro custou-me tanto a escrever. Rasguei tantas e tantas páginas porque estava a tocar na vida de pessoas que algumas ainda estão vivas. A idade dá-nos uma perspectiva da vida completamente diferente, quanto mais não seja porque com os anos percebemos o quanto lutamos, o quanto erramos, as vezes que caímos e nos levantamos. Isso permite-nos olhar e pensar [sobre o outro]: “É perfeitamente compreensível.”

A dada altura escreve, repetidamente, que quer ter filhos. Esse era o desejo de querer dar o que não teve?
Sem dúvida. Eu tenho um instinto maternal insuportável. Queria muito ter filhos, exactamente para não lhes fazer o que me fizeram a mim. Claro que errei. [Quando o livro saiu], a minha filha telefonou-me para dizer que gostou, riu, chorou e disse-me: “Ainda bem que publicou.” Depois pôs um post no Instagram. Li, chorei e pensei: “Só por isto valeu a pena publicá-lo!” Este livro é também para os meus netos. Sem pretensões de ter contribuído para a História, acho que em termos sociológicos o livro permite conhecer os anos 1950.

Um tempo em que, na escola, uma criança era castigada por ser canhota.
Eu era canhota, disléxica... Não escrevi no livro, mas houve um colégio muito conhecido que pediu ao meu pai para eu sair porque era deficiente. (Pausa) É muito complicado aprender a ler quando se é disléxico. Abençoado corrector de texto [no computador] porque senão não sei o que seria a minha vida! Eu escrevo uma palavra, dá errado, mesmo a falar há palavras que não uso. Há coisas que a gente não esquece. Mais do que as reguadas, as orelhas de burro de costas viradas para a sala... Aquele maldito livrinho preto em que tinha de escrever pecados — o que é que a pessoa sabe de pecados naquela idade? Enfim.

Hoje sabemos o que é a dislexia, a hiperactividade. Como olha para a escola dos nossos dias?
Os meus filhos foram estudar para um colégio em que, desde a pré-primária, tinham História de Portugal, teatro, não havia disciplinas. As crianças chegavam e conversavam, as penalizações eram dadas pelos outros colegas. São opções. No meu caso, ou pagava o colégio ou tinha férias e uma vida mais fácil. Decidi pagar o colégio. Os meus filhos nunca choraram para ir para a escola. Isto é importante. 

Faz falta a educação para a cidadania?
Faz, desde que não metam questões LGBT. Quando se pergunta a um miúdo de 11 anos se se sente atraído por rapazes ou por raparigas, está-se a invadir um espaço que tem de ter lugar em casa. O grande problema é que os pais resolveram que os filhos são educados pela escola e não é assim, têm de ser educados em casa, a escola é para instruir. Admiro muito os professores, têm uma profissão de risco. Se falta a base de casa, temos um problema.

E se não se falar em casa?
Uma coisa é a educação para a cidadania, outra é a educação sexual. Há pais que não concordam com isso. O miúdo ouve uma coisa na escola, outra em casa...

O problema não é se nunca ouvir falar? Porque há pais que não querem falar mas há outros que não têm capacidade, por isso, não deve ser a escola?
Os pais que não têm capacidade são exactamente os que nunca vão admitir que existe isso [relações homossexuais]. A discriminação em relação aos homossexuais existe, como em relação às mulheres. 

Mas não pode a escola contribuir para essa mudança?
Acho que não. Se quiserem falar sobre isso, que é sem dúvida importante, então eu prefiro que falem sobre as mulheres. A percentagem de pessoas que nasce no corpo errado é grande, mas o número de mulheres que morrem que nem tordos é maior. Se querem ensinar cidadania, então, comecem por explicar que o homem tem de dividir tarefas, não é ajudar. É preciso ver que as mulheres trabalham fora de casa, em casa e, muitas já têm os pais a cargo. Quando isso estiver feito, então falem de educação sexual. 

Já tem título para o segundo livro, O amor é uma invenção dos pobres, já começou?
Não. Quer dizer, já comecei na minha cabeça. Primeiro tenho de ter as mãos ocupadas: tricô, croché. Depois só me sento ao computador quando a história já cresceu, as personagens já vieram...

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"A infância marca-nos para o resto da vida. Marca-nos pelas carências que tivemos, pela forma como vemos o mundo" Filipa Fernandez

E não se esquece quando vai para escrever?
Não, mas acontece-me outra coisa horrível: acordo de manhã e vou escrever, começo a procurar [no computador o trabalho já iniciado] e penso que perdi os textos, mas não. O que acontece é que de noite sonho e, de manhã, estou perfeitamente convencida de que já escrevi. (Pausa) Este livro foi muito difícil de escrever porque não quero ajustar contas com ninguém.

Quer ajustar consigo?
Muito bem, é isso mesmo. Ensinei isso também aos meus filhos: eu nunca quis passar por cima dos outros. A única pessoa com quem temos de lutar é connosco, ultrapassar as nossas dificuldades, até ao momento em que aceitamos quem somos. 

No próximo livro foca-se nos anos mais activos e o último — Agora que falta tão pouco, a publicar em 2022 — será sobre a velhice?
O último será sobre como uma pessoa, já com uma certa idade, vê o mundo. 

Porquê escrever uma autobiografia?
O meu editor [Rui Couceiro] desafiou-me a escrever sobre as várias fases da vida. Acho que houve uma razão para o fazer — e só no fim do livro é que a percebi —, o facto de a minha mãe ter estado com Alzheimer e demência nos últimos anos, fez-me temer que me acontecesse o mesmo e que os meus netos não pudessem saber quem eu era. Os livros são para eles, a melhor coisa do mundo.

Escreve “falta-me tudo”. Há alguma tristeza neste livro. Quando as leitoras o fecharem, o que vão sentir?
Se alguma coisa este livro mostra é que sou uma sobrevivente e uma resiliente e que, contra todas as expectativas, contra tudo o que ouvi — que não prestava para nada, que nunca seria nada —, eu consegui vencer. Claro que fiz erros, mas fui pornograficamente feliz com os meus filhos. Isso demonstra que a pessoa vai buscar forças não sei onde. Tenho momentos felizes, mas não sei ser feliz.

Conhece mulheres felizes?
Conheço, mas acho que não perdem tempo a pensar nas coisas. Acho que nós somos verdadeiramente felizes quando vemos os nossos filhos e os nossos netos. Nós, mulheres, somos seres humanos muito mais interessantes, muito mais complicados, mas muito mais competitivos do que os homens. Deste livro saem duas ideias, a resiliência, que é uma coisa extraordinária, e o sonho. É muito importante sonhar.

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