Perplexidades em tempo de esperança

Há várias perplexidades, caro leitor, na resposta nacional à pandemia, em áreas tão importantes para a organização da nossa resposta colectiva, para a nossa recuperação e para a imagem do País. Era o que menos precisávamos neste momento, perplexidades em vez de determinação, improvisação em vez de rigor, teimosia em vez de competência.

This is not the end. It is not even the beginning of the end.
But it is, perhaps, the end of the beginning.

Sir Winston Churchill

8 de Dezembro de 2020, início da vacinação contra o SARS-CoV-2 no Reino Unido, uma data histórica que será um marco nesta luta contra uma pandemia que paralisou e mudou o mundo. Uma vitória da capacidade de organização e da determinação britânicas. Depois das hesitações na estratégia de combate à pandemia, a negociação difícil do “Brexit” e algum descontentamento público, era preciso um sinal de esperança e de confiança nas instituições, na ciência e no NHS (o serviço nacional de saúde). Uma tarefa logística enorme, conseguir começar em 70 hospitais, no mesmo dia, e com uma clareza meridiana na estratégia de vacinação a seguir e sem disrupção dos outros serviços.

Confesso, caro leitor, alguma emoção contida, pela eficácia dum serviço público onde fiz a minha especialização cirúrgica, que tanto representa para o povo britânico e foi inspiração para tantos de nós que aí adquirimos hábitos e metodologia de trabalho que procurámos trazer para a nossa realidade. Daí a citação de Sir Winston Churchill, proferida ao receber a notícia da vitória sobre o exército alemão em El-Alamein. É que, de facto, a vacinação por si só não é a consumação da vitória nem sequer o princípio do fim, num combate que não se compadece com afrouxamento das outras medidas de contenção e de saúde pública, mas é um passo decisivo para controlar uma doença cujo impacto global nos escapa ainda.

Portugal vive ainda o período da segunda vaga, do recrudescimento da contaminação de maior número de pessoas e de todos os grupos etários, expressão ainda de uma disseminação não controlada. Valerá a pena perceber como estamos comparativamente com a Europa, para melhor nos podermos situar e organizar o nosso plano de vacinação, o qual terá que ser integrado na resposta colectiva da União Europeia. Devo a JAS [1] o apuramento da informação e os quadros que se apresentam no texto.

Parece claro que a evolução da pandemia em Portugal segue o centro europeu com duas a três semanas de atraso. De facto, houve um agravamento global da situação que ocorre nas últimas semanas de Outubro (quadro I); a Bélgica e Holanda têm uma verdadeira explosão de novos casos com impacto nos serviços hospitalares, enquanto Portugal ocupa ainda uma posição mais favorável que a maioria dos países analisados, a qual só é superada pela Itália, Áustria e Alemanha (menos casos acumulados/100.000 habitantes).

Quadro I – 3.ª semana de Outubro, situação na Europa

Quadro I – 3.ª semana de Outubro, situação na Europa
Quadro I – 3.ª semana de Outubro, situação na Europa
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Quadro I – 3.ª semana de Outubro, situação na Europa

Na última semana de Outubro (Quadro II) há um agravamento substancial que é geral, em quase todos os países, com maior expressão na Bélgica e na Suíça, que ultrapassa a França e Holanda, com tendência crescente para aumento do número de casos (ver curvas nos gráficos). Na Alemanha e Portugal, embora se verifique incremento no número de casos acumulados aos 7 e 14 dias, estes são em menor dimensão que nos outros oito países considerados, sendo a Alemanha o país com menor subida e o que melhor parece controlar a situação.​

Quadro II – 4.ª semana de Outubro, situação na Europa

Quadro II – 4.ª semana de Outubro, situação na Europa
Quadro II – 4.ª semana de Outubro, situação na Europa
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Quadro II – 4.ª semana de Outubro, situação na Europa

É em Novembro que o agravamento da situação nos atinge em força com 508 casos/100.000 habitantes, ultrapassando o Reino Unido, enquanto Bélgica e Holanda já começam a reduzir o número acumulado de infectados (quadro III)

Quadro III – 1.ª semana de Novembro, situação na Europa

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A situação portuguesa continua a deteriorar-se no mês de Novembro, ultrapassada pela Itália, Suíça, Polónia e Áustria, com mais casos, mas que começam já uma fase decrescente, enquanto Portugal continua com maior crescimento relativo (quadro IV), tendência que se acentua no início de Dezembro (quadro V).

Quadro IV - 4.ª semana de Novembro, situação na Europa

Quadro IV - 4.ª semana de Novembro, situação na Europa
Quadro IV - 4.ª semana de Novembro, situação na Europa
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Quadro IV - 4.ª semana de Novembro, situação na Europa

Quadro V – 1.ª semana de Dezembro, situação na Europa​

Quadro V – 1.ª semana de Dezembro, situação na Europa
Quadro V – 1.ª semana de Dezembro, situação na Europa
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Quadro V – 1.ª semana de Dezembro, situação na Europa

Em Portugal, embora se consiga uma redução do número de casos acumulados, a situação é a pior nestes países estudados – pior que nós, só a Suíça –, mas observa-se já um crescimento relativo menor que na França, Reino Unido e Alemanha.

A informação que se pode obter nestes quadros é bem mais complexa do que mencionei, mas deles creio que só podem evidenciar uma realidade: a evolução da pandemia tem sido sobreponível nestes dez países europeus, com avanços e recuos, que foram comuns em todos e desfasados nalgumas semanas. As restrições foram também, na generalidade, comparáveis nos diferentes países; o seu objectivo foi modular a expansão da doença e possibilitar a compatibilização das necessidades em tratamento hospitalar com os recursos dos diferentes sistemas de saúde. Mas não a eliminação ou sequer controle da doença, pois em todos os países persistem sempre focos de potencial agravamento futuro imediato, muito dependentes da disciplina e respeito das populações pelas normas sanitárias que têm sido adoptadas nestes países. E esta é, de facto, uma questão essencial: o cumprimento rigoroso das normas sanitárias, como expressão de cidadania empenhada e actuante.

Há, no entanto, uma outra questão que separará estes países e que é o seu impacto económico, o qual dependerá muito da capacidade e da organização do respectivo tecido económico nacional e da riqueza de cada país. Daí a enorme importância duma estratégia europeia que permita, de alguma forma, criar maior harmonização da capacidade de resposta, nomeadamente nas economias menos poderosas.

Muito se discutiu, entre nós também, sobre as restrições adoptadas, se a limitação dos horários da restauração poderia ter sido diferente menorizando o impacto económico sem agravamento sanitário, mas a realidade é que parece estarmos no bom caminho para controlar a disseminação da doença e, por enquanto, não se descortina outra alternativa. E voltou a comparação com a Suécia, uma sociedade diferente, com capacidades tecnológica, científica e industrial bem superiores à nossa, mas cujos resultados em termos de mortalidade e número de infectados são claramente superiores aos nossos e aos dos seus vizinhos escandinavos e com uma sobrecarga sobre o seu excelente serviço de saúde, que está a obrigar o Governo sueco a equacionar o recurso a ajuda externa, da Finlândia e da Noruega.

Poderíamos ter feito melhor? Claro que sim, sobretudo ter fundamentado cientificamente as decisões políticas, sem o circo mediático das assembleias no edifício do Infarmed. Recomendo artigo publicado no Expresso online de 3/12 do Prof. Miguel Castanho, sobre o recuo, na nossa realidade, da ciência face ao desafio gigantesco da pandemia e recordo afirmações que nunca tiveram fundamento científico. A primeira, sobre os transportes públicos que não seriam fonte de contaminação, baseado num estudo da FMUP, o qual foi mal-interpretado pelos responsáveis para esconder a incapacidade de reorganizar a oferta pública de transportes, situação que impôs o dever aos seus autores de vir a público repor a verdade. Em segundo lugar, a elevada percentagem de 68% de contágios nos contactos familiares invocada em comunicação oficial, sem discriminação do tipo de agregados familiares, que pelos vistos ninguém veio fundamentar cientificamente. E a terceira, que resulta da não inclusão na avaliação da prestação dos serviços de saúde do incremento da mortalidade global, do número de consultas, de actos de diagnóstico, de rastreios e de intervenções cirúrgicas que ficaram por fazer e das suas consequências.

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Coventry, Inglaterra, 8 de Dezembro: Margaret Keenan, 90 anos, foi a primeira a receber a vacina da Pfizer no Reino Unido Jacob King/Pool/REUTERS

E o que me surpreende é a candura de responsáveis que empurram para 2021 a análise desta realidade, quando teria sido indispensável terem sido organizados desde o princípio grupos de trabalho que permitissem identificar quais as áreas mais carenciadas e que necessitavam de actuação mais urgente. A incapacidade dos gestores públicos de perceberem que só teriam a ganhar com a mobilização, logo de início em Março de 2020, de todas as competências e capacidades no sistema de saúde e da academia, e que isso nos teria permitido outra capacidade de intervenção poupando o SNS para que não houvesse esta quebra na prestação de serviços, a dificuldade em reconhecer a capacidade do sector privado (os testes de diagnóstico de covid-19 foram exemplo dum reconhecimento tardio), foi, para mim, surpreendente, e talvez a maior lição destes dez meses de pandemia. Isso e a inconsistência na comunicação e nalgumas decisões oficiais. Sacrificaram-se pessoas – e é duro dizê-lo, mas é a realidade – ao preconceito ideológico e a uma estratégia errada de afirmação do SNS, sem medir as consequências sobre a população, particularmente a mais desfavorecida.

É a lição sobre a qual devíamos meditar com frieza, rigor e isenção, agora que teremos chegado ao fim desta primeira fase do combate e perante o enorme desafio de organizar a nova etapa que é o programa de vacinação. Já todos percebemos como vamos estar dependentes da Europa, na aquisição das vacinas, no apoio financeiro sem o qual não ultrapassaremos este vazio em que mergulhou uma parte importante do sector produtivo do país. Valeria a pena perceber como os países mais estruturados da UE vão organizar o programa e reflectir sobre isso, com objectividade e sem a sobranceria que tantas vezes nos leva ao auto-elogio e à sobrevalorização das nossas competências e capacidades. Podemos sempre aprender com a experiência dos outros, não fica mal a ninguém.

Citei num artigo anterior Einstein e a sua perplexidade perante e teimosia em sustentar as mesmas actuações esperando resultados diferentes. E esta é outra perplexidade e apreensão, sobre a forma e o conteúdo da estratégia para a vacinação. E pensei nas filas que se formarão nos Centros de Saúde, desde a madrugada como já agora acontecem para consultas, quais serão os profissionais, os enfermeiros sobretudo, mas também secretariado com disponibilidade para organizar e implementar todo o exercício de vacinação em massa, mantendo a actividade normal a qual não é substituível por mails ou consultas telefónicas – a digitalização indispensável é outra coisa e bem mais séria. Tudo isto, mais os potenciais problemas logísticos da conservação no frio, da disponibilização rápida e sem perda da qualidade do produto. Haverá mais contratações de pessoal? Onde estão? No sector privado ou social? No estrangeiro? Realocação de recursos humanos tão necessários nas outras áreas do SNS? Haverá dinheiro para isso tudo? Requisição civil? Ou a repetição da abertura de concursos sem cuidar se serão preenchidos?

Não seria possível organizar todo o sistema de saúde, mobilizar as competências que existem nas farmácias bem na proximidade dos cidadãos, as forças armadas e as suas capacidades, criando mais locais dedicados para a vacinação? Na Itália vão organizar nas principais praças das cidades centros de vacinação. E volto ao exemplo inglês. Nesses 70 hospitais, as pessoas vacinadas estavam inscritas nas listas de doentes das instituições e foram chamadas nos seus dias de consulta e de acordo com os critérios de selecção previamente definidos. Não houve filas intermináveis, segundo parece. E as autoridades planeiam organizar não só centros de vacinação como recorrer às farmácias e aos consultórios (surgeries) dos médicos de família. E o mesmo planeiam alemães, italianos, suíços e espanhóis. Porque o sucesso dum plano de vacinação nesta pandemia requer rapidez, eficácia e cobertura tão ampla quanto possível da população alvo no mínimo tempo possível. Quanto mais longo e demorado for o processo, mais tardia será a obtenção de níveis de imunização na população que permitam controlar a doença, mais problemas surgirão no cumprimento das regras sanitárias e mais se prolongará a agonia financeira da actividade económica e se atrasará a sua recuperação em pleno. Não é preciso ser-se sábio, parece óbvio!

A discussão sobre os critérios de vacinação é o palito no bolo que permitirá perceber a desorientação instalada. Porquê improvisar? Já se percebeu o impacto negativo que hesitações como a que deixaram transparecer têm na população e na sua confiança? Se dependemos da Europa para as vacinas e para o resto, ao menos sigamos e adaptemos as orientações que irão vigorar nos principais países da UE e também para o Reino Unido. Alguma humildade intelectual seria bem-vinda!

Há muitas outras perplexidades, caro leitor, tão importantes para a organização da nossa resposta colectiva, para a nossa recuperação e para a imagem do País, e que foram muito bem equacionados em vários artigos, neste e noutros periódicos.

Era o que menos precisávamos neste momento, perplexidades em vez de determinação, improvisação em vez de rigor, teimosia em vez de competência, afunilamento ideológico na escolha dos responsáveis em vez de meritocracia.

[1] Aires de Sousa, J: A Matemática do Covid, Nov./Dez. 2020              

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