A empatia ganhou à fúria (mas a História nunca acaba)

O que poderia restar de minimamente positivo dos quatro anos de Presidência Trump esfumou-se nestas semanas de indignidade democrática, em forma de negacionismo de derrota evidente e sem espinhas.

“Por terem conseguido mudar a história Americana, por terem provado que as forças da empatia são maiores que as da fúria e da divisão, por partilharem uma visão de cura num mundo em sofrimento.”
Edward Felsenthal, editor-chefe da Time, a justificar a escolha da revista de Joe Biden e Kamala Harris, em conjunto, como Personalidade do Ano 2020

As razões da escolha da Time vão ao ponto essencial: o que estava em causa era uma visão empática vs. uma visão fraturante em modo furioso.

Joe Biden não foi só o candidato mais votado da história americana: foi também o “challenger” de um Presidente em funções a obter maior percentagem de votos em quase 90 anos, desde Franklin D. Roosevelt em 1932: 51,3%.

A eleição 2020 confirmou a tendência que estes quatro tão estranhos anos Trump foram mostrando: o ainda Presidente dos EUA conseguira vitória no Colégio Eleitoral contra Hillary mas nunca dispôs de maioria real do eleitorado americano a apoiá-lo.

Donald Trump, primeiro Presidente a fazer um mandato inteiro sem beneficiar de pelo menos metade dos norte-americanos a avalizá-lo, será, também por isso, o primeiro Presidente neste século a falhar a reeleição.

A maioria clara da sociedade americana que foi sempre dizendo que reprovava o estilo antidemocrático de Trump falou quando tinha que falar: rejeitou o modo “bully” e mentiroso e travou o segundo mandato de Trump, dando mais sete milhões de votos a Biden.

É certo que nos Estados decisivos a diferença foi muito menor. Mas também não foi tão pequena como, numa primeira análise, se pôde achar.

Convém explicar que as margens com que Biden bateu Trump nos Estados competitivos foram bem menos apertadas das que Trump bateu Hillary há quatro anos. Só para podermos comparar: na Pensilvânia, Biden ganhou por 91 mil votos (Trump bateu Hillary lá há quatro anos por apenas 54 mil); no Michigan, Biden venceu por 155 mil (diferença 15 vezes maior que a de Trump quando bateu Hillary lá por apenas 10 mil). Só no Wisconsin a diferença foi quase igual: Biden ganhou a Trump por 20 mil votos, Trump ganhou a Hillary por 22 mil.

Com exceção da Florida – onde Trump desempenhou melhor que há quatro anos, graças aos cubanos de Miami –, Biden obteve resultados muito melhores do que Hillary. Recuperou os três Estados da “Rust Belt” e, mesmo tendo sido o primeiro candidato em 60 anos – desde John F. Kennedy – a vencer sem ter ganho na Florida nem no Ohio, pôde atingir a marca dos 306 Grandes Eleitores.

Se o regresso à “Cintura da Ferrugem” para os democratas não constituiu surpresa, o que nos mostrou de novo o mapa eleitoral 2020? Claramente, o “novo Sul”.

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As vitórias de Biden no Arizona (por 10 mil votos num Estado onde Trump tinha ganho a Hillary por 90 mil) e na Geórgia (por 12 mil votos, depois de três recontagens (!), num Estado onde Trump havia batido Hillary por 220 mil) são “game changers”. Há 28 anos que nenhum nomeado presidencial democrata conseguia vencer a Geórgia. E há 24 que nenhum conseguia ganhar no Arizona. No Arizona há uma certa “justiça poética” no que aconteceu: o fator McCain foi decisivo, em mais uma prova de que ser “bully” não oferece ganhos eleitorais a longo prazo.

Na Geórgia vale a pena olhar para a discrepância entre condados rurais (maioria em quantidade, mas com muito pouca população), que votaram em massa em Trump, e zonas urbanas: poucos condados mas muito mais população, com Atlanta a concentrar mais de metade dos eleitores e mobilização em massa de negros, asiáticos e licenciados.

A “maldição das duas Américas” agravou-se e pode estar para ficar. Até esta eleição, o mapa eleitoral parecia beneficiar os republicanos na tese de conseguirem maioria no Colégio Eleitoral, mesmo tendo menos votos no todo nacional. Com o “novo Sul”, em que as minorias crescem em número e em mobilização eleitoral, o paradigma pode ter mudado.

O que quer Trump ao insistir na “fraude” que sabe não ter acontecido? Manter-se em jogo e justificar o que, para o seu ego, é impossível de aceitar, lançando a ideia junto do seu povo de que só não foi reeleito porque “o sistema voltou a roubar-nos”.

Que o ainda Presidente dos EUA não tem sentido de Estado e não reserva a mínima preocupação sobre o modo degradado como entrega as instituições ao sucessor, isso só pode ser novidade para quem andou (mesmo muito) distraído nos últimos anos.

Mas é chocante assistir à passividade cúmplice da maioria dos senadores e congressistas da Câmara dos Representantes eleitos pelo Partido Republicano. Muitos deles acompanharam o Presidente até ao fim no bater contra a parede das instituições.

Trump quer impor-se, pelo medo, como candidato presidencial republicano para 2024. Joga no falhanço da próxima administração para tentar a desforra. Os 74 milhões que obteve dariam para ganhar qualquer outra eleição – e, com a provável abdicação de segundo mandato do então octogenário Presidente Biden, está longe de ser certo que Kamala ou outro democrata consigam repetir os fantásticos 80 milhões de votos (muitos deles, na verdade, “anti-Trump”) de Biden 2020.

O que muitos republicanos ainda em modo “síndrome de Estocolmo” não estarão a ver é que, sem a cola do poder, a capacidade de Trump de manter refém todo um partido fundamental para o sistema perderá força, à medida que o tempo for passando. Como é possível que não se demarquem das ameaças a funcionários estaduais que se limitam a fazer o seu trabalho, validando as vitórias de Joe Biden nos seus Estados?

Os Estados Unidos provaram que continuam a ter instituições fortes, independentes e resilientes. Só assim foi possível que a vitória legítima e clara de Joe Biden nas urnas tenha prevalecido perante o ataque antidemocrático que o ainda Presidente dos EUA tentou promover: graças à coragem e independência das legislaturas e dos governos estaduais (muitos deles republicanos), dos juízes de tribunais estaduais e federais (muitos deles nomeados por Trump).

A 20 de janeiro de 2017, data da tomada de posse de Donald Trump, Barack Obama abriu um precedente e falou no dia em que passava o poder. Para dizer que acreditava que Trump seria apenas um intervalo, uma vírgula”. Se olharmos para a vitória de Biden, Obama parece ter acertado em cheio: a empatia ganhou à fúria.

Mas calma: a História nunca acaba. Sim, os EUA continuam a ser um país fantástico e admirável. Apesar de Donald Trump.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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