Brinkmanship: quem vai ceder primeiro nas negociações britânico-europeias?

Quem recorre ao brinkmanship como estratégia negocial necessita de criar, na outra parte, a ideia de que a sua intenção/ameaça é credível. E que está na disposição de ir até essa situação extrema suportando politicamente os prejuízos que irá sofrer, ainda que isso seja algo irracional.

1. O tempo está a esgotar-se nas negociações entre o Reino Unido e a União Europeia. Imaginar o negociador-chefe britânico, David Frost, e o negociador-chefe da União Europeia, o francês Michel Barnier, nas falésias brancas de Dover, cada vez mais próximos de caírem no mar, é, talvez, uma interessante imagem simbólica para entender as negociações em curso.

As falésias da costa de Dover na parte mais estreita do Canal da Mancha — que na designação inglesa é chamado English Channel (Canal Inglês) —, separam as ilhas britânicas da França e da Europa continental. Ao longo da história britânica adquiriram um elevado valor simbólico como barreira aos perigos e às ameaças de invasão oriundas da Europa continental. Simbolicamente, as falésias são também a primeira ou a última visão da Inglaterra, consoante os sentidos da travessia do Canal da Mancha/Canal Inglês.

2. Está em curso um brinkmanship entre o Reino Unido e a União Europeia. É um termo usado em língua inglesa que não tem uma palavra exactamente correspondente na nossa língua. Na política internacional, o recurso a uma estratégia negocial deste tipo é normalmente feito através da diplomacia em casos onde há interesses críticos em jogo e/ou onde os poderes são assimétricos.

Fundamentalmente, designa uma abordagem negocial que procura atingir os seus objectivos alimentando uma engrenagem credível de concretização de um cenário extremo, com efeitos muito negativos para ambas partes em conflito, embora não necessariamente simétricos, ou seja, da mesma amplitude. Quem recorre ao brinkmanship como estratégia negocial necessita de criar, na outra parte, a ideia de que a sua intenção/ameaça é credível. E que está na disposição de ir até essa situação extrema suportando politicamente os prejuízos que irá sofrer, ainda que isso seja algo irracional. Precisa, assim, de incutir na outra parte a ideia de que é no seu interesse fazer concessões para evitar um resultado desastroso que a afectará também duramente.

3. Nas negociações britânico-europeias sobre a relação comercial pós-"Brexit”, o cenário de ausência de acordo é o equivalente à queda das falésias de Dover para o mar. Todos os protagonistas se magoarão, embora uns mais do que outros.

Para tornar credível brinkmanship, o Reino Unido e a União Europeia dizem estar dispostos a assumir prejuízos na sua própria economia e comércio, se não houver um bom acordo. Divergem, todavia, sobre o que será exactamente um bom acordo em aspectos regulamentares e de concorrência/acesso ao mercado único, nos mecanismos de verificação desse mesmo acordo, nas sanções aplicáveis ao eventual infractor, bem como no acesso europeu ao mar territorial britânico nas pescas e no caso específico da Irlanda do Norte.

Sustentam, também, que ultrapassarão melhor e de forma mais rápida do que a outra parte, os danos que inevitavelmente irão surgir nesse cenário extremo, de corte radical de ligações económico-comerciais.

Boris Johnson e o Governo britânico optaram por tal abordagem praticamente desde o início das negociações com a União Europeia. Nos últimos tempos, também o lado da União Europeia se detecta similar estratégia, como mostram as declarações públicas de Ursula von der Leyen, de Emmanuel Macron e de Angela Merkel.

4. Não sendo impossível, o cenário extremo de um (total) desacordo entre britânicos e europeus parece improvável, mesmo nesta altura onde as negociações ainda não produziram qualquer resultado palpável. Todavia, a ocorrer, levará a que a partir de 1 de Janeiro de 2021 ambas as partes apliquem tarifas aduaneiras aos respectivos produtos nos termos das regras gerais da Organização Mundial de Comércio (OMC).

Para consumo interno dos britânicos, esse cenário é designado por Boris Johnson, de forma suave, como modelo australiano. A realidade é mais dura. Entre outras consequências, afastará, pelo menos no imediato, o investimento directo estrangeiro no Reino Unido que perderia competitividade devido às tarifas aduaneiras aplicáveis nas exportações para o mercado único europeu (por exemplo, da japonesa Nissan estabelecida em Sunderland).

Mas também colocaria problemas sérios às exportações da indústria automóvel alemã para o Reino Unido, que tem aí um dos seus maiores mercados. Para além disso, levaria ainda a que as fronteiras entre o Reino Unido e a União Europeia voltariam a funcionar numa lógica de soberania totalmente clássica, sem qualquer tipo de acordos de simplificação de procedimentos. Daí resultariam prejuízos óbvios no tráfego de mercadorias e de passageiros, sobretudo para os britânicos e as suas cadeias de abastecimento o que, por exemplo no sector alimentar, poderá ser particularmente problemático.

Levaria, também, entre várias outras coisas, a que a indústria pesqueira da União Europeia fosse completamente afastada das águas territoriais britânicas — o que provocará uma dano maior a este sector, em particular em países como a França e a Holanda —, com a Royal Navy a patrulhar e a impedir o acesso as embarcações da União Europeia.

5. É sintomático que Boris Johnson e Ursula von der Leyen tenham decidido, mais uma vez, prorrogar as negociações sobre a relação comercial no pós-Brexit. Ao longo dos últimos meses já vimos inúmeras deadlines (prazos-limite) serem ultrapassadas, com trocas mútuas de acusações sobre a responsabilidade no falhanço. Mas vimos também, sempre, as negociações voltarem a reatar-se. Se um acordo não fosse mesmo o objectivo último de ambas as partes estes sucessivos alargamentos de prazo não fariam qualquer sentido, a não ser para manter um ritual diplomático vazio. Seriam uma pura perda de tempo. A questão central não é por isso saber se haverá acordo, mas quem cederá primeiro nas negociações e qual a extensão dessas cedências. 

Mesmo nesta altura, onde escasseia cada vez mais o tempo até ao final do período transitório anteriormente acordado — o qual termina a 31 de Dezembro de 2020 —, o mais plausível é que acabe por existir algum tipo de entendimento sobre as relações futuras. Poderá ser apenas um acordo (bastante) limitado, de mera contenção dos danos maiores, desde logo nos fluxos de transportes e de mercadorias, para ganhar tempo e poder negocial para novas negociações de maior abrangência. Em qualquer caso, nesta altura é útil para cada parte manter a pressão máxima sobre a outra, fazendo-a acreditar que está disposta a aceitar um cenário extremo.

Apesar dos danos maiores dessa queda serem certamente para os britânicos, a União Europeia teria também a sua quota de problemas sérios que convém não subestimar. Tais danos podem afectar a sua coesão interna e negocial, pois Estados-Membros mais ligados à economia britânica não ficarão impassíveis. Há assim o risco de acidentes neste brinkmanship, mas cair das falésias de Dover, mesmo que o outro caia ainda mais, não é certamente o resultado pretendido por nenhuma das partes. Veremos quem cede primeiro.

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