O álbum de fotografias de 2020

Da mesma forma que só damos valor às coisas quando as perdemos, ainda que temporariamente, o foto-álbum de 2020 vai ser um hino ao impacto que os outros têm na nossa vida, uma colectânea do vazio. Este ano, a família e os amigos foram cancelados.

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O foto-álbum de 2020 vai ser uma colecção magnífica de não-memórias. Vamos poder observar em detalhe a decoração de cada assoalhada da nossa casa, imortalizada em retratos fotográficos da família nuclear quase indistinguíveis das páginas da revista Hola. Verdadeiros Caravaggios de mundanidade: de pijama às quatro da tarde de uma terça-feira a jogar PlayStation, enquanto o meu chefe fala para o boneco na videoconferência; deitado no sofá de sunga e mocassins-pantufa, de olhos fechados com os auscultadores postos a ouvir outro podcast sobre investigação criminal, com os meus filhos a lutar em pano de fundo; a posar vestido de padeiro e a chorar por dentro enquanto mostro uma bola de pão medíocre (mas bem instagramável) que me custou 30 euros em ingredientes e duas manhãs a fazer.

Mal posso esperar por puxar do foto-álbum de 2020 e relatar estas façanhas aos meus netinhos (assumindo que em 2050 o ar ainda é respirável e os meus filhos decidiram trazer ainda mais seres humanos para este planeta sobrelotado). Falar até à exaustão dos bons velhos tempos pré-coronavírus, em que nos podíamos lambuzar de beijinhos e partilhar pratos de presunto sem constrangimentos, enquanto eles reviram os olhos da mesma forma que eu o fazia quando os meus pais me falavam de jogar ao pião. Recontar minuciosamente as séries de qualidade duvidosa da Meh-tflix que devorei enquanto fazia piscinas no sofá. Mostrar-lhes a colecção de vouchers e emails de cancelamento, mementos de experiências não vividas: o discurso de padrinho de casamento nunca lido; o abraço de conforto que tive que dar por telefone enquanto o funeral decorria; a nossa quase ida às Canárias que a TAP desta vez não conseguiu arruinar; as grades de cerveja empilhadas na arrecadação à espera de oportunidade para celebrar algo, o que quer que seja.

Quando chegarmos às páginas de Dezembro, o avô Diogo vai reviver de lágrima no canto do olho os acontecimentos daquelas festividades mágicas, acompanhado por um sentimento de dejà flu. O estafeta da Uber Eats a fazer de Baltazar. O Pai Natal de alma desfeita após uma sequência interminável de televisitas. Ceias de Natal por Zoom, com comentários politicamente incorrectos, teorias da conspiração e reabertura de antigos feudos familiares limitados a episódios de 45 minutos. A abertura das prendinhas com múltiplos ecrãs cheios de caras mal recortadas e com pouca resolução a reluzir em pano de fundo. Felizmente, a dor de coração não se transmite por videochamada nem se capta por fotografia.

O vazio do Natal sem os desnecessários pares de peúgas, a esterilidade do desporto sem fãs, o eco dos espectáculos sem público, o abandono dos parques sem gargalhadas infantis. Da mesma forma que só damos valor às coisas quando as perdemos, ainda que temporariamente, o foto-álbum de 2020 vai ser um hino ao impacto que os outros têm na nossa vida, uma colectânea do vazio. Este ano, a família e os amigos foram cancelados. De todas as coisas nefastas e personagens despóticas que nos rodeiam, esta bela volta ao Sol optou por tirar a plataforma ao que mais nos faz falta. Faz todo o sentido (no sentido em que nada este ano tem feito sentido). No entanto, não podemos deixar que um contratempo arruíne o que tem sido um ano espectacular...

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