Auschwitz, literatura e verdade

A bússola que me orientou ao escrever sobre Auschwitz foi o esforço de reproduzir aquele lugar com honestidade. O que me interessa não é o mito, mas a verdade sobre o que se passou. A literatura é sobre a verdade e bem pode a polícia do pensamento fazer o bullying e a intimidação que quiser, não aceito adulterá-la em função de dogmas, de tabus e de ideias feitas.

Sempre me guiei pelo princípio profissional de que as opiniões são livres, mas os factos sagrados. Nos últimos dias vi-me alvo de uma campanha de ódio nas redes sociais com base numa adulteração caluniosa das minhas palavras numa entrevista à RTP sobre os meus romances O Mágico de Auschwitz e O Manuscrito de Birkenau.

Entre os muitos textos acintosos nas redes sociais estavam os da historiadora Irene Pimentel, um deles a desmentir matéria factual, designadamente que tivesse havido uma piscina em Auschwitz e uma escola em Birkenau e que os prisioneiros se tivessem adaptado àquela realidade. Quando estes desmentidos entraram na esfera jornalística, cuidei de demonstrar que tudo o que eu dissera sobre a piscina, a escola e o fenómeno da adaptação era verdadeiro.

Num artigo para o PÚBLICO, Irene Pimentel retomou agora o tema para, em tom enfim urbano e sereno, sustentar que a minha interpretação de um relatório das SS, que já fora destacado por Hannah Arendt, é “errada”. É uma opinião e respeito-a. Tenho outra opinião. 

Quanto a matéria de facto, constatei que Irene Pimentel já não afirma, como o fez nas redes sociais, que não existia uma escola em Birkenau nem que os prisioneiros nunca se adaptaram. Portanto, considero que reconheceu que estava em erro e que eu disse a verdade.

Já no que diz respeito à piscina, insiste que, “ao contrário do que é dito na mesma entrevista, não havia piscina em Auschwitz-Birkenau”. Porém, logo a seguir admite que “havia um reservatório em Auschwitz I, mascarado de piscina”. Afinal sempre havia algo...

Vamos aos factos. Existia um tanque retangular dos bombeiros em Auschwitz sobre o qual foi colocada uma prancha e onde os SS e alguns prisioneiros tomavam banho. Isso não foi feito para “mascarar” o tanque. Porque haveriam os nazis de ter medo que se soubesse que existia ali um tanque de água? Aqui vai o link para imagens online da dita piscina.

O espaço tinha primeiro uma função, tanque, e adquiriu uma segunda, piscina, mas é importante que se perceba que era conhecido por “piscina”. É assim, por exemplo, que lhe chama um prisioneiro entrevistado pelo historiador Laurence Rees. “‘Havia uma piscina em Auschwitz para os bombeiros’, disse Ryszard Dacko. ‘Eu podia nadar lá’.” O presidente do Yad Vashem do Brasil, Márcio Pitliuk, escreveu-me a autorizar que divulgasse esta sua declaração: “Quanto a piscina, há uma sobrevivente holandesa, Nannete Konig (pode vê-la no Google), vive em São Paulo, mas está com Alzheimer, tinha 16 anos a época, e num dia de muito calor, viu a piscina e nela pulou. Um oficial nazi a viu, mas nada fez. Ela me contou isso pessoalmente.”

Considero a existência da piscina demonstrada.

Poder-se-á pensar que nada disto é relevante, e realmente não é, considerando que estamos a falar de um assunto com a gravidade de Auschwitz. O problema é que estes pormenores foram usados como arma de arremesso numa incompreensível tentativa de me desqualificar. Daí a importância desta demonstração. De resto, um rabino meu amigo, que leu a obra, disse-me que se sentia “pasmado” com a polémica e que teve “a convicção imediata de que quem comenta não leu os livros”. Leiam-nos e compreenderão.

Se a polémica foi alimentada com base literalmente em nada, porque nada houve a não ser uma truncagem caluniosa das minhas palavras, como pode ter ela existido? Há certamente vários fenómenos concomitantes, mas um dos mais importantes parece-me ser a tentação de mitificar Auschwitz.

É preciso começar por compreender que a realidade de Auschwitz não é linear. É complexa e dinâmica, apresenta contradições e paradoxos, surpreende-nos com o inesperado. Compreendo o receio daqueles que acham que falar da piscina e da escola alimente o negacionismo. O problema é que tal receio parte de uma premissa absolutamente errada e que combato com todas as forças: a de que devemos ocultar factos das pessoas. Não se combate o negacionismo com negacionismo, mas com a verdade. Os factos são sagrados e é com eles que a verdade se impõe.

Não temos que apresentar uma construção mítica de Auschwitz nem podemos aceitar a imposição de tabus sobre o tema. Não é isso o que se espera de um investigador. Temos é de exumar as provas, quaisquer que sejam, e apresentar Auschwitz como elas nos revelam, com honestidade, captando a sua essência e também os seus paradoxos. Em que é que a existência da piscina conflitua com a existência das câmaras de gás? Nada. A presença simultânea de ambas é porém relevante porque acentua a incongruência daquele lugar. A mesma incongruência que faz com que Heinrich Himmler, o maior responsável pelo extermínio depois de Hitler, se tenha sentido indisposto quando pela primeira vez viu judeus serem mortos. A mesma incongruência com que Johann Schwarzhuber, o comandante de Birkenau responsável pela morte de mais de um milhão de pessoas, se tenha queixado junto da sua chefia a dizer que não se alistou nas SS para matar judeus. E a mesma incongruência com que se constata que a maior parte dos autores materiais do Holocausto não eram psicopatas sádicos, mas pessoas como nós, capazes de empatia e com perfeita noção de que estavam a fazer o mal.

São essas incongruências, que tentei inculcar nos meus romances, que tornam a descrição de Auschwitz autêntica e nos revelam verdades fundamentais sobre a condição humana. Radica aí a essência desta obra. Querem proibir a divulgação de factos verdadeiros? Recuso-me a acatar tal proibição. Sim, havia uma piscina. Sim, havia uma escola. Sim, os prisioneiros adaptaram-se àquela realidade. E qual é o problema? Querem uma fantasia ou querem a realidade sobre Auschwitz?

Basta ver os capítulos de O Mágico de Auschwitz e O Manuscrito de Birkenau onde a piscina aparece e o expediente da matança “mais humana” é referido para entender que o incongruente revela o grotesco. Num capítulo, o recém-chegado a quem são mostrados os esqueletos ambulantes e as pessoas a caminharem para os crematórios com o cheiro a carne queimada no ar ouve um SS dizer que aquela é a forma “mais humana” de resolver o “problema” judaico, noutro capítulo os SS tomam banho na piscina enquanto ao fundo se erguem as cinzas dos judeus de Lodz gaseados nessa manhã. A incongruência é uma dimensão que nos esbofeteia em Auschwitz.

A entrevista remete para os livros e só os lendo a percebemos totalmente. Depois falem, bem ou mal, mas falem com conhecimento, não com a ignorância e preconceitos. Oiçam as palavras do rabino Shlomo Pereira:

A bússola que me orientou ao escrever sobre Auschwitz foi o esforço de reproduzir aquele lugar com honestidade. O que me interessa não é o mito, mas a verdade sobre o que se passou. A literatura é sobre a verdade e bem pode a polícia do pensamento fazer o bullying e a intimidação que quiser, não aceito adulterá-la em função de dogmas, de tabus e de ideias feitas.

Não se presta justiça ao que se passou em Auschwitz policiando os que recusam o mito. Pelo contrário, é mostrando Auschwitz em toda a sua crueza e absurdo que melhor a podemos compreender. Não há maior tributo que se preste às vítimas do que recordar o que aconteceu com todos os seus paradoxos e contradições, pois é a verdade, sempre a verdade, que derrota o negacionismo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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