Esperança num mundo confinado

A nossa vida, tal como a recordamos, surge-nos eclipsada apesar de estarmos mais acostumados à ameaça invisível da pandemia e às suas mudanças lentas, como um objecto ou um hábito sobejamente conhecido entre nós.

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Nelson Garrido

Existe algo de profundamente poético num confinamento, quando nos alheamos do frenesim quotidiano e a este escapamos, contemplando-o à distância como um teatro. A palavra teatro deriva do grego theatron, que significa “lugar para olhar”. Ao meu redor, numa casa indiferente a tantas outras, aberta à contemplação do suave tédio da ordem doméstica, demoro o meu olhar em muitos objectos conhecidos e que agora despertam a minha atenção de uma forma diferente.

Um passado próximo surge-me nebuloso na minha mente, como uma miragem. Um tempo em que as coisas aconteciam sem conseguir ter tempo para reflectir sobre elas. Exactamente há uma semana encontrava-me numa situação completamente distinta, não confinada mas numa grande superfície comercial a tentar fazer compras no meu único dia de folga da semana, compras em contra-relógio. Recordo-me de me sentir completamente devastada com o caos aflito. Pessoas a percorrer corredores à pressa, as filas intermináveis, os distanciamentos não cumpridos. Aquele final de manhã revelou-se uma triste metáfora da vida, com o ritmo ofegante da procura, o consumo desenfreado, o sentimento muito íntimo de não ter tempo a perder. Apesar de não ter tendências agorafóbicas, aquele episódio foi particularmente angustiante e colocou em causa a verticalidade que julgava intacta, o meu auto-controlo. Amaldiçoei-me por pertencer ao grupo de pessoas que se esquece das munições em casa, refiro-me às listas de compras ou a qualquer outra tentativa de ordem contra o caos desordeiro.

Penso em como não deixam de ser irónicas as consequências distópicas desta pandemia, o uso obrigatório de máscara, o retraimento social, o desconfinamento confinado que nos propõem, dias que se resumem a restrições e permissões, liberdades que não devolvem a vida. A nossa vida, tal como a recordamos, surge-nos eclipsada apesar de estarmos mais acostumados à ameaça invisível da pandemia e às suas mudanças lentas, como um objecto ou um hábito sobejamente conhecido entre nós. E sob as circunstâncias mais adversas é comum surgir um irremediável desejo de fuga e de liberdade, a tentação muito íntima de transgredir. De momento, as possibilidades de evasão são mínimas face a globalização do fenómeno que vivemos. Não existe uma escapatória possível e o compromisso é público, parte de cada um de nós. 

Para muitos, este ano foi como um presente perigoso com as suas ondas de destruição colectiva de negócios e de famílias, e a solidão uma experiência estranhamente desagradável. Um confinamento não é nada face a essa realidade desoladora e também pode ser encarado para além de um cenário de isolamento ou de intolerância. No entanto, pode ser difícil suportar a monotonia, um ficar simplesmente à espera. Mas, como diz José Tolentino Mendonça, esperar não é uma perda de tempo e existem momentos em que as perguntas nos deixam mais perto do sentido do que as próprias respostas.

Como reciclar a nossa existência? Como esquecer e respirar livremente em perímetros muito pequenos? O confinamento poderá ser um momento importante de reflexão antes de voltar à carga e à movimentada realidade externa. Aquilo que é uma necessidade pode representar um incentivo. Todos podem e devem procurar a margem onde escolhem permanecer, refiro-me às diferentes formas de preencher o seu vazio e procurar esperança num mundo confinado.”

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