Heidi Larson: “Podemos não ter pessoas suficientes a tomar a vacina para criar imunidade de grupo”

A responsável pelo Projecto Confiança na Vacina apela aos líderes locais para sensibilizarem os cidadãos sobre a importância da vacinação contra a covid-19 e sublinha que a Europa é neste momento a região do globo mais céptica.

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Avanços da vacina podem ser travados por falta de pessoas interessadas em serem vacinadas ATHIT PERAWONGMETHA

O risco de termos uma vacina para a covid-19 mas não o número suficiente de pessoas para que se crie imunidade de grupo é real. O alerta é deixado por Heidi Larson, professora na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres e responsável pelo Projecto Confiança na Vacina​, que ao longo dos últimos anos tem acompanhado o impacto dos rumores na confiança dos cidadãos nos sistemas de saúde e, de forma particular, nas políticas de vacinação. 

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Heidi Larson

Os dados recolhidos pelas várias equipas que coordena apontam a Europa como uma das regiões mais cépticas sobre a vacinação em geral. Já cooperou com o Facebook e com vários governos e defende que os líderes locais terão um papel preponderante para sensibilizar a população e evitar problemas de desconfiança como os que aconteceram em África na vacinação contra a poliomielite ou até na aplicação de métodos contraceptivos. 

Ao PÚBLICO diz que a grande vantagem dos grupos antivacinas é que ouvem as pessoas e não debitam simplesmente informação. Estes grupos, que florescem nas redes sociais e aproveitam o alcance destas ferramentas, fazem uma comunicação mais direccionada e aproveitam o crescimento do populismo para fazerem chegar a sua mensagem a quem pode estar indeciso. “A desinformação não é um problema tão grande como o da falta de relação. É um sintoma”, diz. Um sintoma perigoso, porque, como explica em estudos já realizados, os rumores nas redes sociais propagam-se a uma velocidade ainda mais rápida do que a própria pandemia. 

Sobre a possibilidade de uma vacina da covid-19 ser obrigatória, a especialista rejeita para já essa possibilidade por “não haver vacinas que cheguem para toda a gente”. Mas explica que aqueles que não tomem uma vacina terão mais dificuldades para regressar à normalidade. 

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Normalidade pode ainda demorar até ser realidade MAXIM SHEMETOV;

Tem analisado a taxa de aceitação das pessoas face a uma vacina da covid-19. Qual é o ponto de situação actual?
O que respondiam há uns meses é diferente daquilo que dizem agora. As pessoas estão constantemente a avaliar o grau de ameaça face à covid-19 e se essa ameaça faz com que valha a pena correr o risco de serem vacinadas. Quando a percentagem de mortos era elevada, como na Primavera, estavam mais receptivos a tomar a vacina. No Verão, quando o número de mortos baixou, a taxa de aceitação caiu também. E nas últimas semanas, com o aumento de casos, houve um novo pico na taxa de aceitação. Nas últimas semanas, passou a haver muito mais informação sobre as vacinas.

Informação e desinformação. Onde começam os rumores e porque é que são tão poderosos?
Muitos dos rumores estão relacionados com outras questões e há muita informação incompleta. Quando há informação incompleta ou falta de certezas, as pessoas começam a falar e a tentar dar um sentido a isso. Isto é uma combinação perfeita para os rumores porque há pequenas peças de informação e não uma história final. Por exemplo, há um rumor famoso que aponta para o facto de uma das vacinas mudar o ADN de quem a receber. O que não é de todo verdade. O que acontece é que as pessoas associam o ARN ao ADN.

E os rumores propagam-se em muitos casos mais rapidamente do que uma verdade.
Em parte, porque há pouca informação para clarificar algumas duvidas.​

E qual é a região mais propensa a rumores? Nos trabalhos que tem desenvolvido, aponta a Europa como uma das regiões de maior risco.
A Europa é a mais céptica em relação a vacinas. Fizemos um questionário global em 2016 que trouxe esse resultado. Desde então, temos feito a monitorização e, mesmo com a possível vacina contra a covid-19, a Europa é uma das mais cépticas.

E porque acontece isso? É uma das regiões mais desenvolvidas, com muita informação...
França é o país pior nesta escala. Tem uma longa tradição de desconfiança face às vacinas. A região da Europa de Leste é outra em que o cepticismo é alto. Muito por causa das questões políticas e noções de liberdade. A Europa do Norte é onde os resultados de aceitação são mais altos. É uma combinação de factores.

Os países onde as pessoas mais facilmente acataram as medidas de restrição serão também aqueles que terão uma maior taxa de aceitação no que toca às vacinas?
Sim, exactamente. Há um sentimento muito grande de escolha livre, anti-obrigação e é isso que tem motivado grande parte das manifestações contra as medidas para conter o avanço da covid-19 e os confinamentos.

Estamos em risco de ter uma vacina e não haver pessoas suficientes a querer ser vacinadas?
Questionários têm demonstrado que a taxa de aceitação pode comprometer a imunidade de grupo. Sim, podemos não ter pessoas suficientes a tomar a vacina para criar a imunidade de grupo. 

Estamos a ver um grande aumento de nova informação científica. Há artigos todos os dias, muitas vezes sem serem revistos pelos pares. Isto também pode ser potencialmente perigoso para o aparecimento de rumores?
É perigoso só se não for boa informação. Num contexto como este, os cientistas ou fazem pré-publicações ou avançam com informações preliminares, porque as descobertas que fazem são muito importantes para quem toma decisões. Neste caso, não é uma coisa má.

O caso da hidroxicloroquina que envolveu a revista The Lancet foi paradigmático.
É muito desafiante [para os cientistas]. As revistas querem publicar as descobertas que podem ter implicações na vida das pessoas ou na tomada de decisões e que são do interesse público o mais rapidamente possível. Mas claro está, até por esse exemplo, pode contribuir para a desconfiança e a desinformação.​

Nos estudos sobre a poliomielite analisou o papel das autoridades locais no controlo da propagação de rumores. Qual o papel destes líderes? Os políticos, os líderes religiosos...
Alguns destes líderes não percebem muito de vacinas e não estão a fazer um trabalho essencial que é usar linguagem simples para explicar estas coisas complicadas. Os líderes locais vão ser preponderantes quando as vacinas chegarem e devem ser envolvidos porque conhecem as comunidades melhor do que ninguém. Podem também ouvir as preocupações dessas pessoas. Antes de introduzirem esta vacina, há uma série de dúvidas na comunidade e é bom que tenham uma resposta. 

O crescimento do populismo pode ser um risco? Vimos o que aconteceu com a desvalorização da pandemia nos EUA e no Brasil. Os líderes dos dois países desvalorizaram a pandemia e são dos mais afectados tanto em mortes como em casos.
Absolutamente.

Nos vários trabalhos que publicou é assertiva em dizer que os grupos antivacinas são muito mais eficazes em angariar as pessoas que estão no meio, que nem são contra nem a favor. Qual é vantagem?
Não se trata da quantidade nem da qualidade de informação que têm. É antes a forma como operam. É eficaz. Os grupos pró-vacinas usam informação que acham que é importante. E é. Mas não é diversa o suficiente face à diversidade das dúvidas e das comunidades que existem. Os grupos antivacinas estão a ouvir. Se houver mil pessoas antivacinas e cem mil pró-vacinas, o que os elementos do grupo pró-vacinas vão fazer é dizer sempre a mesma coisa.

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Ruas podem continuar vazias nos próximos meses, mesmo com a chegada de uma vacina JEENAH MOON;

E os outros?
Os outros mil vão dividir-se em grupos de dez e responder a diferentes questões. As pessoas sentem que as estão a ouvir, que escutam os problemas pessoais de cada um. 

É por isso que diz que há mais um problema de falta de relação do que de desinformação?
A desinformação não é um problema tão grande como o da falta de relação. É um sintoma. 

Os grupos antivacinas são melhores no que toca a desenvolver relações?
Sim e são muito localizados. Cada comunidade tem questões diversas e eles estão lá a responder a cada ponto que é distintivo. Se comparássemos com o universo empresarial, os grupos antivacinas estariam mais próximos da realidade das empresas de Silicon Valley, muito mais adequadas às necessidades de cada pessoa.

São muito mais diversificados?
Diversificados e personalizados.

Também foi contactada pelo Facebook para ajudar nas questões da desinformação. As redes sociais são um dos locais onde as mensagens falsas se propagam mais facilmente. O que podem essas empresas fazer para evitar a propagação dos conteúdos falsos?
Se há algo que é altamente perigoso, como beber lixívia para impedir a covid-19, deve ser imediatamente apagado. Porque é perigoso. Mas há outras coisas, não tão explicitas, mas que criam dúvida e que é eticamente mais difícil de apagar. O que se pode fazer é reduzir o alcança dessas mensagens. Porque um dos problemas das redes sociais é que conseguem ter um alcance muito grande. E são mensagens que podem desencorajar pessoas de usar vacinas.

A obrigatoriedade da vacina pode ser uma solução? Ou será um risco ainda maior?
Não acredito que isso vá acontecer. Não há vacinas que cheguem para todos. Mas há situações em que serão obrigatórias, como hospitais e centros de dia. Empresas também poderão exigir que os trabalhadores sejam vacinados. Há também a questão dos países que podem requerer que quem viaje para lá tenha a vacina.

Para ir a Meca, por exemplo, são precisas três vacinas. Muito provavelmente a quarta será a da covid-19. A entrada em concertos e em estádios, quando a situação normalizar, poderá acontecer apenas com a vacina. Ou seja, não se trata de algo imposto, mas para que as pessoas participem nesses eventos têm de ser vacinadas. Há sempre uma opção: a de não ser vacinado e não poder participar nesses eventos.

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