A União Europeia e a Decisão (PESC) 2020/1999: um instrumento jurídico arbitrário para problemas políticos

Não deixa de ser preocupante assistir à crescente tendência de Estados, a título autónomo, e organizações regionais insistirem no recurso a soluções jurídicas como forma de camuflarem a aplicação de medidas inspiradas, não raras vezes, por aspectos puramente políticos e mais como forma de fragilizar o poder de um Estado do que propriamente em fazer justiça para as vítimas.

Passou ao lado de muitos o comunicado de imprensa da Comissão da União Europeia do passado dia 7 de Dezembro de 2020, em que foi anunciada a adopção da Decisão (PESC) 2020/1999 do Conselho. Esta Decisão impõe medidas restritivas contra violações e atropelos graves dos direitos humanos, em concreto em casos de crimes contra a humanidade e de genocídio e um conjunto de outras “violações ou atropelos de direitos humanos” que não só não se resumem aos exemplos elencados como ainda visam condutas de avaliação absolutamente arbitrária como são as supostas violações à “liberdade de reunião pacífica” ou até à “liberdade de opinião e de expressão”.

Recentemente, tive a oportunidade de contribuir para a iniciativa do Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos relacionada com o estudo das medidas coercivas unilaterais (“sanções”) aplicadas por cada Estado a terceiros. Além do reconhecimento evidente de que estas medidas podem comportar em si natureza ilícita, desde logo, por violarem o princípio da igualdade de soberanias, foi importante perceber que Portugal afasta-se da solução de aplicação autónoma destas medidas e segue cegamente as decisões que emanam da Política Externa e de Segurança Comum (PESC) da União Europeia.

Neste contexto, Portugal reconhece, implementa e executa dois tipos de medidas coercivas unilaterais: as decorrentes de resoluções do Conselho de Segurança da ONU e as aprovadas no quadro PESC. As últimas geram mais controvérsia pela ilicitude subjacente a medidas aprovadas pela UE contra Estados terceiros quando inexiste relação vertical entre tais Estados e a União. Apesar das externalidades negativas que são geradas pela ingerência ilícita decorrente da aplicação destas medidas contra os Estados alvejados e de se tratarem de medidas fortemente penalizadoras para as pessoas singulares e colectivas visadas, a verdade é que, para Portugal, estas são medidas com natureza administrativa e não penal.

Todavia, a verdade é que se tratam, na prática, de medidas sancionatórias e não administrativamente preventivas. Afinal, por exigirem uma análise prévia a alegadas violações de direitos humanos, falamos da comissão de potenciais crimes e da extraterritorialidade da lei penal dos Estados a factos com os quais estes Estados e a UE não têm qualquer elemento de ligação concreto.

Já no passado mês de Novembro, o Senado dos EUA aprovou o Rodchenkov Act, um projecto de lei que permite à justiça dos Estados Unidos agir criminalmente contra pessoas implicadas em sistemas de doping ocorridos em outros países. À luz da alínea b) do artigo 3.º deste projecto, o Congresso auto-atribuiu aos EUA a jurisdição extraterritorial para julgar qualquer infracção que a investigação conduzida por órgãos norte-americanos entendam que tenha sido cometida em competições desportivas internacionais.

A questão da jurisdição extraterritorial é de tal forma controversa que pode levar à sobreposição de leis e interpretações em diferentes jurisdições passíveis de comprometer a existência de um único conjunto de regras e de uma visão uniforme sobre determinados eventos. Os perigos da extraterritorialidade do direito penal não são uma novidade no Direito. Todavia, apesar de a justiça internacional já se ter pronunciado sobre o assunto, ainda que com muitas cautelas, na década de 1920 – quando o Tribunal Permanente de Justiça Internacional tomou posição no caso SS Lotus –, só na década de 1970 o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) começou a pronunciar-se com maior firmeza sobre a chamada “jurisdição universal” que alguns Estados pretendem avocar para si.

No caso Barcelona Traction, o TIJ assinalou que “as obrigações de um Estado para com a comunidade internacional como um todo” são obrigações que, “pela sua própria natureza [...], são da preocupação de todos os Estados”, tratando-se das obrigações erga omnes... obrigações que, por serem tão importantes, “todos os Estados podem ser considerados como tendo um interesse jurídico na sua protecção”.

As obrigações erga omnes estão associadas aos crimes mais graves cometidos contra a humanidade (genocídio, crimes de guerra e outros da mesma natureza). A referência do TIJ no caso Barcelona Traction permanece ainda de tal forma actual que no caso Questões relativas à Obrigação de Julgar ou Extraditar (Bélgica v. Senegal), decidido em 2012, o TIJ decidiu que “qualquer Estado Parte da Convenção [contra a Tortura] pode invocar a responsabilidade de outro Estado Parte com o fim de assegurar o cumprimento das suas obrigações erga omnes partes [...] e fazer cessar a falha”.

E ora neste caso, como no caso que opôs a Nicarágua aos EUA, o TIJ reconheceu que o interesse comum no cumprimento das obrigações previstas na Convenção contra a Tortura concede a cada Estado Parte neste instrumento o direito a exigir a cessação da violação por um outro Estado Parte. Sucede que esse direito a exigir a cessação da violação de normas de direito internacional geral ou consagrado em tratados internacionais não significa que cada Estado unilateralmente se assuma como polícia mundial e investigue, julgue e sancione o que entender que deve ser punido de acordo com a sua agenda ideológica. Cada Estado tem, sim, o dever de não se ingerir em jurisdição alheia e direito de recorrer ao TIJ ou a outro tribunal internacional com competência especializada sobre o assunto da controvérsia e peticionar que o tribunal responsabilize o Estado infractor (veja-se a actuação, neste sentido, tanto da Gâmbia contra o Myanmar, como dos Países Baixos contra a Síria, no TIJ).

Por isso, impor ou querer forçar a visão de um conjunto de valores de forma unilateral e ainda sem recolha de prova no terreno através de uma investigação isenta é, na verdade, uma forma de ingerência ilícita com o objectivo claro de um Estado interferir nos assuntos internos de um outro sem obter autorização de ninguém para esse efeito. Está, por isso, em causa uma motivação geopolítica e não juridicamente humanitária que viola a Carta das Nações Unidas e pode obrigar o Estado ingerente a ser responsável pelos actos que praticou.

Devemos reflectir, a este respeito, sobre o caso Mandado de Detenção de 11 de Abril de 2000 (República Democrática do Congo v. Bélgica), que trouxe alguns tópicos que me parecem importantes para a reflexão em torno do assunto. Neste caso, a Bélgica citava uma lei para dizer que tinha legitimidade para julgar o que entendia serem crimes cometidos pelo ex-ministro dos Negócios Estrangeiros Abdoulaye Yerodia Ndombasi.

O TIJ não se pronunciou sobre o exercício de jurisdição universal pelos Estados porque a RD Congo não formulou pedido nesse sentido. Mas o juiz presidente Gilbert Guillaume afirmou que não existe “soberania predeterminada” e insistiu que o exercício de jurisdição universal sobre determinados tipos de crimes decorre de tratados celebrados entre Estados que atribuam essa legitimidade.

Repare-se que a discussão internacional sobre o exercício de jurisdição universal tem acontecido relativamente a crimes jus cogens – falamos, portanto, das maiores atrocidades cometidas contra a humanidade. Com o devido respeito pela preocupação que assuntos graves como a dopagem e a violação da liberdade de expressão e da liberdade de associação merecem, não é possível compará-los com o genocídio ou com crimes de guerra, como EUA e UE, respectivamente, querem fazer. Além de que inexiste um qualquer tratado internacional que autorize qualquer Estado ao nível global a sancionar ou investigar unilateralmente supostas violações de direitos humanos e estas acções tornam-se perniciosas por se centrarem em notícias ou em comunicações de ONG (muitas das quais com agendas próprias).

Todavia, supondo que todos estes crimes seriam comparáveis entre si, mesmo nos casos de genocídio, em que existe uma convenção própria através da qual os Estados se comprometem a combater e julgá-lo, quem quiser investigar e julgar estes casos só o pode fazer se houver algum elemento de conexão com o Estado sancionador: alguma vítima ter a nacionalidade desse Estado, existir consenso quanto à definição do crime e quanto à culpa dos autores dos crimes e caso estes se encontrem no seu território e mais ninguém o querer julgar.

Fora destas situações, os Estados carecem de legitimidade para exercerem jurisdição universal sobre violações cometidas noutros palcos e cometidas e sofridas por pessoas sem qualquer tipo de ligação àqueles. Por tudo isto, não deixa de ser preocupante assistir à crescente tendência de Estados, a título autónomo, e organizações regionais insistirem no recurso a soluções jurídicas como forma de camuflarem a aplicação de medidas inspiradas, não raras vezes, por aspectos puramente políticos e mais como forma de fragilizar o poder de um Estado do que propriamente em fazer justiça para as vítimas. Numa altura em que deve ser privilegiado o multilateralismo e o consenso, sobretudo através dos variados fóruns da ONU, a Decisão (PESC) 2020/1999 é  passível de gerar alarme e de consolidar uma tendência passível de se revelar uma autêntica Caixa de Pandora mais apta a escalar a tensão internacional do que a dissolvê-la.

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