Não, o SEF não serve

A morte de Ihor Homenyuk é um caso de polícia a ser julgado pelos tribunais. Mas é indissociável do problema sistémico do SEF

Em Portugal não basta morrer alguém para se resolver um problema grave – é preciso morrer alguém e esperar nove meses. Foi esse o tempo que passou entre a morte de Ihor Homenyuk no Centro de Instalação Temporária (CIT) no Aeroporto de Lisboa e o afastamento da directora nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Entre o transporte do corpo a custas da família da vítima e o anúncio de que Portugal vai indemnizar a mulher e os filhos do cidadão ucraniano. Entre o dia em que o Estado matou um homem e o dia em que o Presidente da República admitiu que, caso se verifique “um pecado mortal do sistema”, então é porque “o SEF não serve, e tem de se avançar para uma realidade completamente diferente”.

Passaram-se meses desde esta morte, mas até esta morte passaram-se muitos anos de alertas nacionais e internacionais. É de 2018, por exemplo, a declaração da Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, de que o CIT do Aeroporto de Lisboa e outros centros temporários “são o no man’s land contemporâneo”, um “universo impenetrável” e de “grande obscuridade”, com difícil acesso a ajuda legal ou social. Foi também desse ano o alerta das Nações Unidas para a presença de crianças retidas nestes centros, contra todas as recomendações internacionais. (E é já de 2020 um novo alerta da Provedora de Justiça de que Portugal era o único entre 17 países europeus a reter estrangeiros nos seus aeroportos por mais de 48 horas.)

São de há muitos mais anos as denúncias persistentes de que o SEF não tem meios humanos e técnicos suficientes para cumprir as suas funções perante um número cada vez maior de estrangeiros que vivem ou que querem viver legalmente em Portugal, e que chegam a esperar mais de um ano por um atendimento. São de há muito tempo as denúncias de que há refugiados a desistir de Portugal pela intolerável morosidade dos processos de reunião de famílias, e de investidores que acabaram por partir ao colidirem com um muro de papel.

Sim, a morte de Ihor Homenyuk é um caso de polícia a ser julgado pelos tribunais. Mas é indissociável do problema sistémico, do “pecado mortal” e original de um SEF que é simultaneamente um serviço burocrático sem mãos para a sua missão e uma força policial que age sem fiscalização em no man’s lands aeroportuárias (fala-se desde 2019 em pôr fim a esta bicefalia). É indissociável de um país que afinal não sabe receber e que vê demasiadas vezes o estrangeiro como culpado de qualquer coisa até prova em contrário. Não é de hoje nem é de Março – é de há vários anos e vários governos.

Esta quinta-feira, o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, disse ter estado “quase sozinho” na gestão do caso Ihor Homenyuk e acusou a comunicação social e os comentadores de desinteresse em relação ao dossiê. Congratulou-se e respondeu aos críticos: “bem-vindos ao combate pelos direitos humanos”

Não sei que jornais Eduardo Cabrita lê. Sim, houve colunistas a acordarem muito tarde para o caso, alguns até com objectivos pouco nobres, como a instrumentalização sectária ou a menorização de outras causas – “ai, se Ihor fosse negro”, leu-se por aí. Faltou-lhes ler Mamadou Ba, por exemplo, que escreveu sobre o ucraniano logo em Abril. Mas foram vários os órgãos de comunicação a investigar o assunto, incluindo o PÚBLICO, e a dar espaço a vozes da sociedade civil sobre este tema. Sobre Homenyuk, não é de hoje – é de Março. Sobre o colapso do SEF, é de há vários anos. 

O que fez o copo transbordar só agora? Foi a chamada do ministro ao Parlamento? Foram as declarações da comissária europeia dos Assuntos Internos? Foi a dose certa de pressão mediática? É que o problema não é de hoje, nem é de Março – é de há demasiados anos.

Entretanto, há uma mãe na Ucrânia que diz que ainda não recebeu um telefonema de Portugal que lhe ajudasse a explicar aos filhos o que aconteceu ao pai. Foi em Março. Bem-vindos a Dezembro.

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