Um apelo à moderação política

Se em vez de adversários políticos virmos inimigos a abater, o sistema colapsa. A polarização maniqueísta entre Esquerda e Direita ameaça arrasar o nosso espaço público e a nossa capacidade de enfrentar os nossos problemas de frente.

Ao defender ideias liberais, já me disseram que sou de Esquerda (à Direita). Também já me disseram que sou de Direita (à Esquerda). Confesso que a dicotomia Esquerda-Direita me parece uma forma simplista de encarar a realidade política, bem complexa. Em todo o caso, se a Direita me vê como sendo de Esquerda, vendo-me a Esquerda como sendo de Direita, porventura estarei ao Centro. Mas, sinceramente, a forma de catalogar o meu Liberalismo é o que menos me preocupa. Compreendo que para quem veja a política como uma guerra entre o bem e o mal, para a Direita que se reduz a ser anti-Esquerda e para a Esquerda que se reduz a ser anti-Direita, seja necessário categorizar a pessoa dentro desse binómio. Pela minha parte, rejeito essa visão.

Nasci num Portugal já europeu. Nasci num mundo globalizado. Se a pátria de Fernando Pessoa era a língua portuguesa, a minha pátria é multilingue. Oficialmente, sou cidadão português e cidadão europeu. Na verdade, sou cidadão do mundo, consciente de que as soberanias partilhadas são essenciais para resolução de problemas globais. Sei que o que faço tem consequências para os outros, e que a nossa atuação coletiva tem consequências para todos. Como liberal, defendo que o poder deve estar o mais próximo do indivíduo que seja possível, mas também que problemas globais requerem respostas globais. Devemos reformar o governo da globalização? Sim. Devemos deixar cair a globalização? Não.

Nasci numa república. Nasci numa democracia liberal. Sei que o voto é essencial, e nunca deixarei de ir votar, mas sei que a liberdade política vai muito além do voto. Sei que a atuação ética vai para além da mera atuação legal, e que a defesa tenaz da ética republicana é essencial para a defesa da República. Como cidadão, sei que tenho direitos, mas também sei que tenho deveres. Sei que tenho o dever de aprender, de me informar, de ser curioso sobre os problemas com que nos defrontamos, e que tenho o dever de intervir civicamente, promovendo, na medida das minhas possibilidades, para construir soluções e promover compromissos. Sei também que os políticos têm um papel importante a desempenhar, e que a vida dedicada à política precisa urgentemente de ser valorizada e credibilizada, portanto não caio no canto de sereia de quem apregoa que todos os políticos são iguais e não merecem qualquer credibilidade.

Nasci num Estado laico. Não prescindo da separação entre Estado e Religião. Não compete ao Estado impor uma religião, estabelecendo uma Religião de Estado. Compete ao Estado assegurar a todos a liberdade de consciência, incluindo a liberdade religiosa – o que inclui, sublinhe-se, a liberdade de não ter qualquer religião e de criticar qualquer religião. Nenhuma religião deve ser privilegiada face às demais. E a liberdade religiosa não pode transformar-se num privilégio religioso, com direitos especiais face aos deveres impostos à comunidade como um todo.

Não prescindo nem tenho medo da diferença ou do debate. Rejeito em absoluto o racismo, o sexismo, bem como as diversas fobias que procuram estigmatizar grupos inteiros de pessoas por puro e simples preconceito. Não prescindo do pluralismo e dos meus adversários ideológicos. Não me resigno ao culto do desenrascanço e do chico-espertismo, à cultura do “respeitinho”, à cultura da cunha, a teorias do coitadinho, ao miserabilismo hipócrita do “pobre mas honrado”, ou à ideia de que não posso criticar práticas contrárias aos meus valores por ocorrerem em países diferentes do meu, nos quais esses valores não prevalecem.

Não me resigno àqueles que se pretendem puros e que querem pegar fogo ao mundo, refazendo-o à sua imagem e semelhança, reduzindo a cinzas a diversidade que tanto nos enriquece. Não me resigno àqueles que fazem o culto do executivo e desprezam os freios e contrapesos que nos protegem do exercício arbitrário do poder. Não me resigno àqueles que, em nome da liberdade ou igualdade, anseiam por regimes autoritários, e legitimam todos os tipos de discriminações. Não me vergo perante terroristas, que querem pela violência e pelo medo impor as suas visões do mundo.

Não acredito em tecnocracias. Não existem políticas públicas puramente técnicas, porque todas dependem, em primeira linha, de opções políticas, todas elas subjetivas. É do confronto constante entre pontos de vista diferentes que se produz inovação e se robustecem os alicerces da democracia liberal. E é de investigação técnica de qualidade, e da avaliação contínua, que se obtém informação importante sobre os potenciais impactos das opções políticas tomadas e sobre os seus efeitos reais. Assim: à política o que é da política, à técnica o que é da técnica.

Reconheço a falibilidade de todas as instituições. A vida é feita de imperfeição. Nenhuma forma de organização económica é perfeita. O Estado tem limites. O Mercado tem limites. O Setor Social e Cooperativo tem limites. Temos de fazer escolhas individuais, mas também temos de fazer escolhas em comunidade: que objetivos pretendemos atingir e como atingir esses objetivos. Essas escolhas têm custos. Essas escolhas têm benefícios. A forma como avaliamos esses custos e esses benefícios depende da nossa hierarquia de valores, da nossa ideologia política. Sei que escolhas faria, mas também sei que nem todos concordam com elas.

Na verdade, as diversas ideologias políticas encontram-se representadas de forma diferente na comunidade, e a democracia política liberal permite, por um lado, a concorrência entre diferentes ideologias e, por outro, compromissos que permitem a existência de maiorias de governo. Numa democracia liberal, a soberania popular é temperada por um sistema de freios e contrapesos que protege os indivíduos e as minorias, mitigando os riscos de um exercício arbitrário do poder. A existência de um sistema de direitos fundamentais, de um Estado de direito, e da repartição e interdependência de poderes, incluindo um sistema judicial independente e credível, tornam possível o debate político e a transição pacífica do poder, atendendo à evolução das preferências políticas da comunidade.

Sinto que, embora muito haja a melhorar, é preciso não perder de vista aquilo que já alcançámos, e como o alcançámos, construindo sobre o que correu bem e admitindo e aprendendo com os erros. Não me sinto representado por nenhum tipo de extremismo. Viver em comunidade implica conviver com a diferença. A diferença é essencial para a concorrência e a cooperação, para a inovação e procura de novas soluções para os problemas, de que depende o regular funcionamento de uma democracia liberal. Para o sistema funcionar, no entanto, é essencial que haja reconhecimento da legitimidade política dos diversos concorrentes ideológicos. Estes devem ser encarados como adversários a derrotar, com os quais poderá ser necessário dialogar, não como inimigos a abater, com os quais o diálogo é impossível.

Se em vez de adversários políticos virmos inimigos a abater, o sistema colapsa. A polarização maniqueísta entre Esquerda e Direita ameaça arrasar o nosso espaço público e a nossa capacidade de enfrentar os nossos problemas de frente e ultrapassar situações de crise, por estarmos demasiado ocupados a guerrear-nos. Quando o dogmatismo substitui o compromisso, o sistema quebra, a violência instala-se, e corremos o risco de passar o nosso tempo a sacrificar bodes expiatórios nos altares das nossas convicções, enquanto os nossos problemas se vão agudizando.

Ao mesmo tempo, há quem pense que ver uns quantos vídeos na Internet, todos a dizer o mesmo e a citar as mesmas fontes, de forma circular, substitui o estudo rigoroso e aprofundado das matérias. Há quem rejeite a Ciência e o método científico e dissemine informação perigosa para a segurança ou para a saúde de todos, enquanto beneficia da proteção conferida pelo progresso científico e tecnológico exponencial dos últimos duzentos anos. Há quem se iluda a pensar que é mais livre por decidir quais os factos que são reais de acordo com as suas convicções, ou por conhecerem alegadas verdades ocultas, tipicamente contraditórias entre si, que o “sistema” não quer que se conheça.

No entanto, quando o preconceito, as teorias de conspiração e o pensamento mágico substituem os factos, o espírito crítico e o rigor, tornamo-nos menos livres. Ficamos agrilhoados a dogmas irrefutáveis, por estarem assentes em premissas inquestionáveis, que não precisam de ter qualquer adesão à realidade, apenas tendo que aderir àquilo em que queremos acreditar. Ora, a liberdade começa nas nossas cabeças, com a consciência de que temos o poder de criar as nossas próprias formas de encarar a vida, a nossa própria hierarquia de valores, e de agir em conformidade. A liberdade efetiva depende também de termos a informação necessária para exercer esse poder e o espírito crítico necessário para processar a informação em causa. Quando nenhuma destas premissas se encontra preenchida, de que forma é que podemos escolher, verdadeiramente, enquanto indivíduos, e mesmo como comunidade, o nosso caminho?

Aqui chegados, como referi, não sinto uma necessidade imperiosa de me categorizar na dicotomia Esquerda-Direita. Na verdade, defendo que deve haver confronto e diálogo constante entre ideologias, e coligações e acordos entre ideologias diferentes, de geometria variável, perpassando o espectro político. Estou habituado a ver as minhas ideias criticadas à Esquerda e à Direita, e a criticar ideias tipicamente associadas à Esquerda e à Direita.

Talvez isto me coloque ao Centro, de facto. Se colocar, será um Centro militante, um Centro intransigente na defesa da moderação política, dos nossos direitos fundamentais (civis, políticos, sociais e económicos), da concorrência e da cooperação ética entre ideologias, de uma globalização inclusiva e sustentável, capitalizando os ganhos materiais assinaláveis dos últimos duzentos anos e a sua expansão a toda a população mundial, através de reformas institucionais e do multilateralismo, e da rejeição sem medo de grupos políticos que rejeitam a tradição pluralista da democracia liberal, apoiam (aberta ou veladamente) a violência, ou estigmatizam (aberta ou veladamente) grupos de pessoas, apresentando não-soluções para grandes problemas.

Esta estratégia tem riscos? Tem. Mas a tentação de normalizar os extremos parece-me bem mais arriscada, incluindo alianças e cooptação das suas mensagens. É mais fácil criar “estratégias de poder” que acabam a normalizar e fortalecer a polarização? É possível. Mas também me parece possível criar uma “estratégia de poder” que passe por estudar os problemas das pessoas que votam e encontrar respostas, competindo com a retórica vazia de quem simplesmente se autoproclama antissistema.

Nunca conseguiremos atingir a perfeição. Mas conseguimos obter compromissos que nos permitam preservar as nossas conquistas e, construindo sobre elas, continuando a melhorar. Para que isto seja possível, o Centro não pode ceder. Tem de se manter. Porque é ao Centro que nos encontramos para resolver problemas. A polarização maniqueísta apenas serve para aniquilar soluções.

Poderão dizer-me que tudo isto é utópico. Que as ideologias são estanques e não se devem misturar. Que o pragmatismo deve imperar e que devem assinar-se os acordos que forem necessários para retirar “o outro lado” do poder. Pela minha parte, não fico convencido. A polarização maniqueísta não nos beneficia. Assim, prefiro o idealismo pragmático: o idealismo sem pragmatismo é inconsequente, porque não vive na realidade; o pragmatismo sem idealismo não tem rumo, porque não tem sonho que o comande.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 2 comentários