Depoimentos revelam cultura de terror no hóquei canadiano: um vendaval de abusos físicos e psicológicos

Agressões sexuais, humilhação pública, violência física. Há relatos de 14 ex-jogadores que chegam agora a tribunal, no Ontário.

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USA Today Sports

Aviso prévio: este texto pode conter cenas susceptíveis de ferirem a sensibilidade dos leitores. São relatos de acontecimentos que mudaram a vida de 14 ex-jogadores canadianos de hóquei no gelo. Relatos de abusos físicos e psicológicos. De agressões e ameaças. De tentativas de denúncia e encobrimento. Relatos de uma cultura tóxica e de terror que atingiu jovens, entre os 16 e os 21 anos, que procuravam integrar-se em diferentes equipas do Canadá e que chegam agora a tribunal.

Não há nada como as imagens cruas e chocantes que constam dos depoimentos dos antigos jogadores da Liga Canadiana de Hóquei (LCH) para ilustrar esta faceta oculta de desumanização do desporto. Alguns relatam terem sido vítimas de sodomização com um stick de hóquei, outros terão sido obrigados a ejacular para fatias de pão e forçados a comê-las no final, há quem dê conta de abusos sexuais continuados, quem denuncie promoção de combates entre novatos e exercícios de humilhação gratuita, que passavam por despir a roupa e rapar os pêlos púbicos.

Estes eram (serão, ainda?) alguns dos “rituais” que faziam parte do meio, uma espécie de rito de passagem e condição obrigatória para aceitação no núcleo duro das equipas. Uma realidade que começou a ser desenterrada quando Dan Carcillo e Garrett Taylor, também eles antigos atletas da LCH, decidiram apresentar uma queixa em tribunal, há cerca de seis meses, contra a Liga, as suas equipas e os respectivos directores por “perpetuarem um clima tóxico que comporta uma conduta violenta, discriminatória, racista, sexualizada e homofóbica que atinge os jogadores menores de idade”.

Encorajados pela determinação de Carcillo e Taylor, vários outros depoimentos foram surgindo entretanto, apensos ao processo que corre no Tribunal Superior do Ontário. Depoimentos, esses, que até ver não foram dados como provados em tribunal, mas que apresentam imensos pontos em comum e congregam ex-jogadores que hoje têm entre 27 e 47 anos. Um intervalo etário que permite rebater a ideia de que este poderia ser um fenómeno muito circunscrito no tempo.

Nus e amontoados

“Eu não culpo os jogadores mais velhos. Eles não sabiam mais do que aquilo. Não havia ninguém que os detivesse. Os jogadores estavam inteiramente por sua conta. Tínhamos de governar o nosso mundo. Quando eu jogava na Liga do Ontário, parecia algo relativamente normal e aceite”, denuncia um jogador que actuou no campeonato regional, entre 1992 e 1995, citado pela Sports Illustrated.

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Daniel Carcillo, o autor da queixa que deu origem ao caso em tribunal USA Today Sports

Entre as provações impostas aos rookies, há quem fale também de sexo forçado com prostitutas sob o olhar dos restantes elementos da equipa, de atletas que defecavam no balneário e obrigavam os novatos a atirar os dejectos uns aos outros, de jogadores trancados na casa de banho do autocarro, nus e amontoados. Uma galeria de alegações de horrores que a equipa de advogados que representa os queixosos espera conseguir utilizar para provar que se trata de uma prática concertada e repetida na modalidade.

Jay Johnson, professor de Cinesiologia na Universidade de Manitoba e um especialista em rituais de iniciação, descreve uma “cultura desviante” em determinados patamares do hóquei no gelo. “Com base na minha pesquisa, um jogador júnior da Liga Canadiana de Hóquei tem de ter muita sorte para evitar alguns dos rituais ou outro tipo de abusos quando compete nestes campeonatos. Os abusos continuam até hoje e as direcções estão totalmente a par da sua existência”.

Algumas das Ligas regionais já adoptaram, há alguns anos, políticas de tolerância zero em relação a abusos ou algum género de discriminação, mas Johnson duvida da sua verdadeira eficácia, dada “a ubiquidade das práticas abusivas e a cultura muito fechada que rodeia o hóquei”.

Dependências e fobias

Para além deste círculo hermético que é o balneário, nalguns casos o tormento estendia-se para lá dos pavilhões. Nas Ligas jovens do hóquei no gelo canadiano, é comum os jogadores que são oriundos de paragens mais longínquas ficarem alojados em casa de “famílias de acolhimento” aconselhadas pelo clube. Num dos testemunhos, um dos ex-atletas revela que lhe foi destinada a casa de alguém que já tinha sido condenado por pedofilia e que, quando tentou denunciar o abuso de que foi alvo junto da direcção do clube, foi aconselhado a calar-se sob pena de ser expulso.

Os efeitos devastadores provocados por anos de abusos também são assumidos pelos ex-jogadores que assinam os depoimentos. Muitos falam em dependências (de álcool e drogas) provocadas pela necessidade de ultrapassar o trauma, outros de fobias que duram até hoje (são incapazes de voltar a pisar uma pista de gelo), ou de experiências incapacitantes que lhes mudaram a vida: “Tenho mais dificuldade em lidar com isto do que com um cancro que tive por altura dos meus 20 anos”.

Em Julho, o presidente da LCH, Dan MacKenzie, emitiu um comunicado que afirmava que o organismo estava “profundamente perturbado” com as alegações de abuso que tinham vindo a público e que iria formar um painel de especialistas para lidar com o tema, que começaria a trabalhar ainda este ano.

Os depoimentos que agora se juntam à acção judicial vêm colocar ainda mais pressão sobre a cúpula da modalidade, no Canadá. Pode demorar um ano ou até mais até o tribunal chegar a uma decisão sobre se o caso tem condições para avançar como uma acção colectiva, mas a ferida vai continuar aberta nos próximos tempos. “Durante muito tempo os abusos foram constantes. Se não conseguíamos suportar, ficávamos fora da equipa. E muitos jogadores abandonaram a modalidade por causa disso”.

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