Total de horas extra no SNS atinge o valor mais alto de sempre

Até Novembro já se realizaram cerca de 15,4 milhões de horas suplementares, mais 860.344 que o valor registado em todo o ano passado.

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Paulo Pimenta

O ano ainda não acabou e os profissionais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) já bateram recordes de horas extraordinárias. Segundo dados do Portal do SNS, consultados pelo PÚBLICO, entre Janeiro e Novembro de 2020 já se realizaram cerca de 15,4 milhões de horas extraordinárias. Um total que já ultrapassa em mais 860.344 horas o valor registado em 2019, quando, no final do ano, os profissionais de saúde tinham realizado um total de 14,5 milhões de horas extra. E aquele tinha já sido um ano excepcional nesse campo.

Ou seja, nunca desde 2014 - primeiro ano com registo deste indicador no Portal do SNS - o número total de horas de trabalho suplementar no SNS registou um valor tão alto. Para representantes de médicos, enfermeiros e auxiliares de saúde “este número não é uma surpresa” e traduz a “falta de uma política de contratação e de retenção” de profissionais no serviço público, que a exigência da pandemia deixou ainda mais evidente. O Ministério da Saúde revela que “até ao final da semana passada as unidades de saúde celebraram 7508 contratos com profissionais para fazer face à pandemia” provocada pelo vírus SARS-CoV-2.

Este indicador - que no Portal do SNS não abrange informação da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde e de hospitais em parceria público-privada - soma o total de horas em trabalho suplementar diurno, trabalho suplementar nocturno, trabalho em dias de descanso semanal obrigatório, trabalho em dias de descanso semanal complementar e trabalho em dias feriados. Só em 2018, a despesa com o trabalho suplementar no SNS chegou aos 263 milhões de euros (ainda não existem dados em relação a 2019), ano em que o número de horas extra começou a aumentar de forma mais expressiva após a passagem das 40 para as 35 horas semanais (os médicos continuam a fazer 40).

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Aumentar

De volta aos números desde ano, nos primeiros 11 meses os profissionais de saúde fizeram mais dois milhões de horas suplementares (mais 15,45%) quando comparado com o mesmo período de 2019. Só em relação a Novembro deste ano, fizeram-se 1,5 milhões de horas de trabalho extraordinário, um crescimento de 4,8% comparado com o mês anterior. O pico anual foi, no entanto, atingido em Junho com pouco mais de 1,7 milhões de horas extraordinárias nesse mês.

Necessidade de mais recursos

O volume de horas extra realizadas pelos médicos “já era uma situação que preocupava antes da pandemia”, refere ao PÚBLICO Noel Carrilho, presidente da Federação Nacional do Médicos. O clínico recorda que é habitual os médicos ultrapassarem todos os anos o número de horas extraordinárias que estão obrigados a fazer por lei anualmente e que foi por isso que no ano passado chegaram a acordo com o Ministério da Saúde para que em vez de 200 horas fossem 150. “Foi aplicado nos contratos individuais de trabalho, mas para os contratos em função pública, apesar de acordado, não foi publicado”, lamenta.

Reconhecendo que a pandemia criou uma “situação excepcional”, Noel Carrilho mostra-se preocupado com a pressão que se irá manter ainda por vários meses. “A solução é ter mais médicos a trabalhar. Não há outra maneira de resolver as necessidades existentes e que estão agravadas com o trabalho que está a ficar por fazer com doentes não covid”, afirma. “O Ministério da Saúde diz que deseja diminuir o número de horas extra e de trabalho à tarefa e não conseguiu nem uma coisa nem outra. Ao mesmo tempo diz que há mais médicos, mas não há reforço. Não há outra forma de chamar a isto que não seja propaganda”, conclui.

Também a bastonária dos enfermeiros afirma não estar nada surpreendida com o aumento de horas extra feitas pelos profissionais do SNS, uma grande fatia das quais acredita serem de enfermeiros. “Sempre tivemos muitas horas a mais. Isto só vem ilustrar o que dizemos há cinco anos: há uma subcontratação de enfermeiros, embora se formem em número suficiente. Razão pela qual temos 20 mil enfermeiros no estrangeiro e muitos podiam voltar. Mas ninguém volta por contratos de quatro meses”, aponta Ana Rita Cavaco.

“Não há uma estratégia de contratação de enfermeiros ou de carreira. Temos de ter uma política de contratação e de retenção para que possamos chegar à média dos países da OCDE e daí o plano que apresentamos de contratação de três mil enfermeiros por ano no espaço de dez anos”, afirma, salientando que os recursos de enfermagem existentes são insuficientes para recuperar toda a actividade que foi suspensa nos últimos meses. “É uma situação preocupante”, afirma a bastonária, prevendo um aumento dos níveis de burnout.

Não menos cansados estão os assistentes operacionais e não é de agora, alerta o presidente do Sindicato Independente dos Técnicos Auxiliares de Saúde. “Alertamos que a alteração do horário semanal criou a falta de muitos profissionais”, diz Paulo de Carvalho, salientando que desde Março deste ano muitos auxiliares acabaram por se infectar ou ter de estar em isolamento profiláctico, o que agravou as dificuldades. “Houve alguma injecção de capital humano, maioritariamente por períodos de quatro meses, mas não foi suficiente. As pessoas não se sentem motivadas, é um trabalho muito exigente pelo qual recebemos 645 euros mensais base”, destaca, para mostrar quão difícil é atrair profissionais para esta área.

Resultado? “Há pessoas a fazer turnos de 12 horas sucessivamente e alguns a fazer dois turnos seguidos. Estamos no limite. Cada vez mais se fazem horas extra”, afirma Paulo de Carvalho, lamentando que o grupo profissional que representa não seja devidamente valorizado. Há uma outra questão que o preocupa: “Há três anos que estamos a negociar com o Ministério da Saúde e estava a haver uma luz ao fundo do túnel relativamente à aprovação de uma carreira. As negociações pararam um pouco nesta fase pandémica e o meu receio é que possam ir por água abaixo.”

Pandemia explica

O PÚBLICO pediu ao Ministério da Saúde para comentar os dados disponíveis no Portal do SNS e perguntou sobre que medidas estão a ser estudadas para atenuar esta situação e o desgaste dos profissionais do SNS. O gabinete da ministra Marta Temido diz que “colocou à disposição desde o início da pandemia os instrumentos legais necessários às instituições do SNS no sentido de reforçar os seus recursos humanos, de modo a responder à situação epidémica” e refere que “os números reflectem a situação de emergência de saúde pública que vivemos, que obriga a muito trabalho realizado ao fim-de-semana, por exemplo a vigilância de contactos”.

Destaca a contratação de 2680 enfermeiros, 625 técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica e de 2820 assistentes operacionais. Quanto a médicos, afirma que já antes da pandemia “havia um esforço” para garantir a suficiência destes profissionais. “Apesar disso, nas situações de imperiosa necessidade, e maioritariamente destinadas a assegurar o funcionamento dos serviços de urgência que laboram 24 horas por dia, 365 dias por ano, continua a ser necessário recorrer ao regime de trabalho suplementar”, assume, lembrando o acréscimo de 23 288 trabalhadores (mais 19,41%) no SNS em relação a Dezembro de 2015.

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