O sul de uma Amália que pintava flores

Como confidenciava o meu amigo João Belchior Viegas – cúmplice, conselheiro e empresário de Amália entre 1965 e 1992 –, ela procurava os campos de Odeceixe e lá, sim, sentia-se contente por estar viva.

“Na brancura da cal o traço azul / Alentejo é a última utopia. // Todas as aves partem para o sul / todas as aves: como a poesia”, escreveu Manuel Alegre. Amália também sentiu esse apelo inebriante do sul, talvez impelida pelo seu espírito de cigana-andarilha e bicho-do-mato. Ávida de horizontes largos e da comunhão despreocupada com as coisas mais simples, a afinidade com o mistério da imensidão alentejana já morava em si: “A primeira vez que fui ao Alentejo era muito nova e tive uma sensação de liberdade. E aquele espaço todo sem fim à vista. O Alentejo é um sítio onde uma pessoa vê mais do que aquilo que pode ver.”

E depois havia o mar, motivo poético que cantou nos palcos do mundo e que redescobriu nos encantos da então virginal costa alentejana, e que para Amália foi sempre sinónimo de força e de ânsia de evasão e libertação. “Gostar do mar foi talvez uma necessidade”, diria mesmo, e imaginava frequentemente, como reza certo cancioneiro alentejano, “que o mar se transforma[va] em rosas / e o seu barco num jardim”. Daí ter pintado, pela sua mão, flores de todas as cores nas paredes voltadas para as águas atlânticas da sua casa no Brejão, na freguesia de São Teotónio (concelho de Odemira), onde escondia e exorcizava a inescapável solidão – de muitos anos a arrastar o amor das multidões – e a desilusão – de quem não tinha saudade do passado nem esperança no futuro –, numa espécie de fortaleza que também era um porto de abrigo. Um lugar solar, o reverso do fado, onde Amália pôde ser raiz e flor, tronco e brisa, profunda e fluente – dualidades que tão bem sintetizou o amigo e poeta David Mourão-Ferreira.

Como confidenciava o meu amigo João Belchior Viegas – cúmplice, conselheiro e empresário de Amália entre 1965 e 1992 –, ela procurava os campos de Odeceixe e lá, sim, sentia-se contente por estar viva, excitando-se com os prados repletos de malmequeres e comovendo-se com as cores garridas e contrastantes, como que embriagada pelo cheiro da esteva que a aragem espalhava. Equacionaria até consultar um psicanalista por causa da sua paixão pelas flores, com quem falava amiúde e ralhava quando não abriam ou cresciam como desejava.

Os seus amigos, aliás, também eram aqueles que consigo se aventuravam a cortar ramagens e flores em muros de casas particulares em Lisboa. Quando eram surpreendidos pelos proprietários, Amália lançava o xaile à cabeça e fugia a rir. Apesar de a Câmara Municipal lhe ter começado a remeter ramos de flores regularmente para a poupar ao cansaço das jardinagens clandestinas, a fadista nunca abdicou desse vital divertimento. Um dia, quando questionada sobre as suas virtudes, Amália diria mesmo que as suas maiores qualidades eram cheirar com o seu nariz, ver com os seus olhos, apalpar com os seus dedos, crer em Deus – à sua maneira, sem deslumbramento pelo céu nem medo do inferno (curiosamente, a palavra “Amália” significa em árabe “trabalho de Deus”) – e não ter ambição.

A descoberta, em 1962, dos paradisíacos nove hectares de terra junto à praia da Seiceira no Brejão veio no seguimento de uma década de intensa projecção internacional para Amália, a qual culminou em 1959 com a eleição como uma das quatro melhores cantoras do mundo (a par de Édith Piaf, Judy Garland e Lena Horne) pela prestigiada revista norte-americana Variety. Não obstante, Amália faria um ano sabático, ausentando-se dos olhares públicos entre 1960 e 1961, vindo a casar-se neste último ano com o engenheiro César Seabra no Rio de Janeiro. Apesar de ter anunciado que iria abandonar a carreira artística passando a viver no Brasil, a paixão pelo chão pátrio e por um povo-fa(da)do que a entendia falariam mais alto, e em 1962 Amália regressa a Lisboa, ano em que conhece Alain Oulman na Ericeira (este mostra-lhe inicialmente o poema Vagamundo, de Luís de Macedo) e com quem enceta uma inspiradora colaboração que iria ser decisiva para o seu futuro percurso, levando-a a explorar novos e ousados territórios musicais estranhos até então a uma visão mais clássica do fado: “Eu estava à espera daquela música [de Oulman]. Não é que estivesse à espera, mas a minha maneira de cantar estava à espera daquilo.”

O ano de 1962 é, assim, duplamente estimulante para Amália: uma nova etapa musical em que o fado atingirá voos mais altos de arrojo e reinvenção (patentes logo no célebre EP Amália Rodrigues, mais conhecido como Busto ou Asas fechadas); e a descoberta de um singular refúgio a sul. Num descapotável verde prateado, de estilo americano, conduzido por um motorista, Amália chegou ao Brejão com César Seabra, recém-casados, e ter-lhe-á dito “já não saio mais daqui”, adquirindo uma herdade junto à falésia a Jacome Pacheco, pai do actual dono do Café Central da pacata povoação, pela quantia de 300 contos. Terminava assim o périplo exploratório da fadista pela costa alentejana (de Lisboa a Sagres), em busca de distância e resguardo relativamente aos holofotes da fama. O marido de Amália idealizaria então para esse espaço um projecto de vivenda para férias, com linhas modernas e privilegiando o conforto, bem como um acesso (ainda lá estão os degraus que Amália tantas vezes pisou) ao pequeno areal da praia que ficaria conhecida como a “Praia da Amália”. Uma casa sem luz nem telefone, “simplesmente” um sítio onde pendurar o chapéu (como diria Bruce Chatwin), um “lugar sem deve nem haver”, onde Amália encontrou “um modo de calar e um falar claro / um olhar cara a cara e frente a frente / um viver devagar que tudo é raro / e único e só assim urgente” (nas palavras de Manuel Alegre sobre o Alentejo).

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Fundação Amália Rodrigues daniel rocha

A ligação apaixonada de Amália àquele lugar mágico de finisterra e suas gentes terá sido uma das obras-primas da sua vida: desde as idas regulares ao Café Central, em jeito de ritual, onde pedia sempre a sala de dentro e uma mesa específica, escolhendo invariavelmente peixe (sobretudo dourada), às sardinhas assadas na brasa com que gostava de receber os amigos em sua casa, passando pela cúmplice amizade com Francisca Efigénia (a “Xica”), a quem escreveu uma dedicatória numa fotografia que dizia “Para a minha amiga Xica que sabe tanto de pesca que até me pescou a mim” e com quem partilhava longos serões a ver filmes do Fred Astaire ou a devorar livros de cowboys alugados numa loja de São Teotónio. Sem esquecer ainda a original sinalização em forma de malmequer (que resistiu à voragem do tempo e lá permanece) que mandou colocar na entrada do caminho de terra batida que dá acesso à sua herdade, as flores de todas as cores que pintou, com as suas próprias mãos, no muro branco de entrada da herdade (infeliz e inexplicavelmente hoje apagadas), os porcos que ficava a mirar de longe e que baptizava com nomes próprios (“António”, “Joaquim”, etc.), ou até a sincera e esforçada tentativa, ainda que quase sempre desajeitada, de ajudar o caseiro da quinta a plantar batatas.

Ao sul, num Alentejo que desnuda e recentra, acredito que Amália pôde evadir-se, esquecer(-se) e regressar àquela frescura das coisas vegetais e ao grande vento límpido do mar que Sophia de Mello Breyner sublimemente cantou nos seus versos. A sua atracção pelos lugares de fronteira e abismo – talvez porque “todos os amantes são raianos / como os ciganos de passagem” e seu “amor é de bala e desafio” (novamente Alegre); e o Belchior falava-me tanto do seu fascínio por Sagres – levou-a assim a esse lugar-destino de liberdade e solidão, como que sentada à beira do mundo, o qual se foi mitificando no imaginário colectivo, ainda mais após a sua morte no Outono de 1999. A sua memória espiritual e afectiva ficou indelevelmente impressa naquela paisagem recôndita e selvagem, naquela falésia plena de energia onde se parece vislumbrar todo um admirável mundo novo – tal como Amália nos abriu novos horizontes de ouvir e de sentir com o seu fado feito de singular intuição e verdade natural.

Numa entrevista a Inês Pedrosa dois anos antes da sua morte, Amália reiterava a ideia de que andara toda a vida a não viver a sua vida, de que não fizera a sua vida, fizeram-na. E de que continuava a não saber o que é a felicidade, até porque “não se pode meter uma vida toda numa palavra”. Mas a sul ela terá pintado de muitas tonalidades e matizes esse denso preto que dizia ser, excessivamente, a cor do seu feitio e da sua vida inteira – essa cor que para si não era necessariamente triste: “Tenho muitas alegrias através da cor preta. Às vezes, por isso, é como se fosse encarnado.” Gosto de pensar que Amália encontrou nos trilhos e areais além-Tejo, entre a serenidade criadora dos campos e o ímpeto fremente e inquietante das águas atlânticas, uma (ambígua, misteriosa) alegria que advém de uma tristeza à qual não faltou pecado nenhum.

Escreveu Miguel Torga no seu livro Portugal, de 1950: “Passado o Caldeirão, é como se me tirassem uma carga dos ombros. Sinto-me livre, aliviado e contente, eu que sou a tristeza em pessoa!”. No Algarve o escritor e médico nascido em terras do norte não se via verdadeiramente dentro da pátria nem fora dela, mas sim “numa espécie de limbo da imaginação, onde tudo é fácil, belo e primaveril” e onde “um poeta tem a sensação de que se pode viver do ar, sem ninguém ter necessidade de pensar sequer no dia de amanhã”. Talvez sejam sobretudo essa leveza e volúpia dos sentidos, essa “miragem dum céu deste mundo”, que tanto fascinaram muitos dos que, ao longo dos tempos, rumaram ao Algarve d’aquém-mar, placa giratória de culturas e imaginários que temperaram e sedimentaram a identidade mediterrânica.

Esse espanto pelo sul também contagiaria a escritora e tradutora Fernanda de Castro (1900-1994), amiga próxima de Amália. Fernanda – casada com António Ferro, homem forte de Salazar na área do fomento cultural subordinado aos fins políticos do regime – era um espírito irrequieto e fervilhante, o que, somando-se a uma saúde mais débil e a precisar de outros ares, levou-a a cultivar uma relação estreita com o Algarve, o qual, segundo ela, possuía três milagres: a praia da Rocha, o promontório de Sagres e as amendoeiras em flor. Mantinha mesmo uma casa em Alporchinhos (concelho de Lagoa), que alugava ao ano e da qual registou diversas impressões nas suas memórias, recordando a simplicidade, virgindade e quase despovoamento do lugar, e remetendo-nos para um Algarve outro:

[…] a praia deserta, o rochedo com 200 ninhos de gaivotas no dizer dos pescadores, a vinha a perder de vista, as figueiras carregadas de figos doces e pequenos, o cheiro a maresia e as ervas aromáticas, os crepúsculos incomparáveis e um céu carregado de estrelas – em parte alguma via tantas estrelas cadentes –, e ainda o silêncio e os sons que também eram silêncio, marulho das ondas, pios de gaivotas, adejar de asas.

Ao longo do ano de 1963 Fernanda de Castro desdobrou-se em visitas ao Castelo de Silves, Quinta de Mata-Mouros, rio Arade, cais de Portimão, praça pombalina de Vila Real de Santo António, Tavira e suas inúmeras igrejas, fortaleza na praia da Rocha, Olhão, Albufeira e a outros lugares com o intuito de organizar o I Festival do Algarve. Fruto da sua rede privilegiada de relações e contactos, apresentou o projecto ao então secretário nacional da informação, Moreira Baptista, argumentando nestes moldes: “Acho que o Algarve começa a ser muito conhecido no estrangeiro, mas a verdade é que, tirando o sol, o mar e as praias, o turista não tem nada que fazer além do banho e das refeições.” Autorizado o evento pela tutela, o staff organizador seria composto, para além da própria Fernanda, pelo seu irmão Francisco Telles de Quadros e Castro, pela escritora Edith Arvelos, pela pintora Inês Guerreiro e pelo poeta José Carlos Ary dos Santos.

O arrojado evento cultural, que se estendeu assim a vários pontos do Algarve, só se concretizaria em 1964, iniciando-se a 12 de Agosto no Castelo de Silves com um espectáculo cuja primeira parte foi dedicada à música e poesia árabes, com a colaboração especial de Larbi Jacoubi (então director do Teatro Universitário de Tânger) e dos irmãos e músicos Hamza Ouazzani e Abdellatif Ouazzani (príncipes marroquinos). Na segunda e terceira partes foram apresentados, respectivamente, sonetos camonianos e excertos d’Os Lusíadas, e, em estreia absoluta, o poema dramático de Ary dos Santos “Tempo da Lenda das Amendoeiras” (dedicado pelo autor a Fernanda de Castro), o qual ganhou aqui uma importante consagração.

Amália Rodrigues, que acreditava nas origens árabes (e marítimas) do fado, encarando-o como expressão de uma queixa, foi uma das protagonistas deste I Festival. A relação da fadista com o Algarve já remontava aos anos 40 (como atestam várias fontes), com passagens pela região para concertos, sobretudo nos casinos mas também em festas de cariz mais popular, sempre com assinalável sucesso para a já então considerada “rainha do fado”. A actuação de Amália na Festa da Lua, em Armação de Pêra, seria assim um dos pontos altos do festival, tendo como pano de fundo um mar repleto de barcos engalanados e iluminados, e no meio do areal uma embarcação colorida, rodeada por uma guarda de honra de pescadores, de remos ao alto. Fernanda de Castro registou nos seus escritos autobiográficos esse momento único e mágico em que a vibração do lu(g)ar, o simbolismo do cenário montado para o efeito e a envolvência poética da música se fundiram harmoniosamente:

E, sobre esse barco, pálida, sob a pálida brancura da Lua, Amália, sozinha, de pé, com um vestido negro que a tornava ainda mais branca. Na praia, coalhada de gente, um silêncio mortal. Começaram a ouvir-se as guitarras escondidas na sombra e a voz de Amália, vibrante, pura como um cristal, abalou o silêncio, a noite, a própria lua que a iluminava. Havia uma leve aragem e eu disse à Jacqueline, que tinha vindo passar umas semanas a Alporchinhos:

 – Dommage quil fasse un peu froid.

 Ao nosso lado uma francesa, elegante e muito bela, voltou-se para mim, sorriu e disse:

 – Quest-ce que ça fait, madame! C’est beau, c’est terriblement beau!

Depois de cantar durante duas horas, Amália andou de grupo em grupo na praia, dando-se ao povo, agradando-o – um dia confessaria mesmo que, no fundo, essa era a sua única pretensão –, como tanto apreciava/precisava. A organização do festival preparara, sobre a areia, vários repastos típicos: “vilas” de amêijoas, ostras e polvos grelhados, azeitonas britadas com orégãos, pão de trigo, queijos de Serpa, vinho de Lagoa e de Portimão, figos e amêndoas, morgadinhos e dom-rodrigos, aguardente de medronho, etc. O já aludido Larbi Jacoubi ficaria mesmo extasiado com a força e verdade com que a voz de Amália exprimia a tristeza pura e poética ou a existencial alegria de viver, tirando do dedo um anel que lhe ofereceu dizendo-lhe: “Como vê, este anel tem como adorno um olho de boneca. Tenho outro igual em Tânger, com o outro olho da mesma boneca. Use este, que eu vou usar o outro, e assim ficaremos ligados até ao fim da vida.”

Revisitando uma vez mais memórias das conversas com o João Belchior, penso que Amália tinha essa capacidade rara (uma espécie de dicotomia quase “esquizofrénica” e cativante) de convocar a alegria solar, a festa, a dança e o riso com a mesma intensidade e verdade com que cantava a tragédia e derramava lágrimas sobre o mundo, sem se inclinar ou revelar necessariamente uma opção muito clara/declarada por apenas uma dessas dimensões – e talvez por isso gostasse tanto de citar o espanhol Antonio Machado (1875-1939), um dos seus poetas predilectos: “A todos nos han cantado / en una noche de juerga / coplas que nos han matado…” (do poema “Cante Hondo”).

Na 2.ª edição do Festival do Algarve, realizada em 1965, Amália voltaria a participar, desta vez cantando em Albufeira numa grande esplanada na praia. Dado o vento e a humidade do ar, a fadista estava preocupada com a sua garganta atendendo a que iria actuar ao ar livre. Daí que Inês Guerreiro, da organização, tenha falado “com um velho marinheiro e com o auxílio deste montou no estrado uma vela de traineira que, logo que Amália começou a cantar, se ergueu como se o estrado fosse de facto um barco a fazer-se ao mar”. O belo efeito de cena que a solução originou, protegendo ao mesmo tempo a preciosa voz de Amália do vento, foi recebido com uma enorme ovação pelas centenas de pessoas (sobretudo estrangeiros) que estavam presentes no local, segundo também recorda Fernanda de Castro nas suas memórias. Quando, nesse mesmo dia, num momento de maior relaxamento, a escritora perguntou a Amália o que sentia perante o enorme reconhecimento mostrado lá fora por plateias cosmopolitas, a sua reacção inicial foi de silêncio, e a resposta seria: “Penso que nada daquilo é comigo, que eu estou ali, sim, mas que não sou eu, que estou longe, muito longe, e que estou a cantar, a agradecer e a sorrir como se fosse outra pessoa, como se de qualquer modo estivesse a receber aplausos que não me eram destinados.”

Amália nunca aprendera a cantar e nem sabia porque cantava, como sublinhava amiúde. Mas a sua intuição, ouvido e instinto (uma espécie de inteligência-bruxa que lhe dizia do bem e do mal) eram porventura os seus traços mais vincados e a sua “única e exclusiva arma”, como até confessou. Porque a canção popular portuguesa talvez seja – como ela definiu, com uma clarividência genial, numa entrevista a Miguel Esteves Cardoso em 1982 – duas ou três notas que não valem nada e que nos comovem.

Evoco novamente João Belchior Viegas, a cuja memória dedico este texto e com quem tive o privilégio de privar em São Brás de Alportel, em 2003-2004, na fase final da sua vida. Após o falecimento de Amália em 1999, que muito o abalou, desencantou-se com Lisboa e rumou à terra-natal de seus pais, ambos oriundos da vila da beira-serra, onde começaria a colaborar com a Biblioteca Municipal (a quem doou o seu espólio literário), inclusive coordenando um clube de leitura em parceria comigo naquele equipamento cultural, o qual arrancaria a 23 de Abril de 2003.

O João nasceu em Lisboa em 1926, frequentou o Colégio Moderno até 1944 e depois o Liceu Camões, integrou nos anos 50 o grupo literário Távola Redonda (fundado pelo seu maior amigo, o poeta David Mourão-Ferreira), trabalhou com o pai no Montijo no ramo corticeiro e ingressou depois, a partir de meados da década de 50, nos quadros da Valentim de Carvalho, assumindo em 1965 a chefia dos seus estúdios em Paço d’Arcos (Oeiras) – onde produziu vários discos de Amália, entre eles Gostava de ser quem era (1980) e grima (1983), ambos inteiramente com letras da fadista –, função que acumulava com a de seu agente artístico.

Como tão bem resumiu José Manuel dos Santos numa crónica evocativa ulterior ao seu falecimento, o João “possuía as qualidades e até alguns dos defeitos necessários para o conquistar [o mundo], excepto a vontade de ter vontade para isso. E defendia-se do mundo, atacando-o. Nunca conheci ninguém que fosse tão capaz de ver a nódoa no melhor pano”. Eficaz, fiel e invisível – a pintora Maluda faria um retrato seu que é ilustrativo, em que há um corpo, mas não há traços no rosto –, esteve nos melhores e mais difíceis momentos da vida de Amália. Correu o mundo com ela, aconselhou-a e transmitiu-lhe aquela segurança, amparo e clarividência que alguém com a personalidade intensa e inquieta da fadista tanto precisava. Em 1984, Amália refugiou-se no hotel Milford Plaza, em Nova Iorque, pensando que teria uma doença fatal e num momento de profunda tristeza e desespero enviaria a João Belchior uma carta (inédita) que passo a transcrever: 

Querido Belchior

Tenho tentado telefonar-lhe mas a diferença das horas não me deixou encontrá-lo. Quero dizer-lhe que gosto muito de si, que não gosto nada de estar aqui e que estou cheia de medo! Só amanhã é que vou saber se tenho de ser operada. Não fique triste. Todos nós temos que ir e eu, como já deu por isso, não gosto de cá andar! Só lhe digo isto porque julgo que para si será um bocadinho menos triste… No caso de eu ficar por cá, queria pedir-lhe um favor. Gostava que continuassem a pagar ao Carlos Gonçalves [músico de Amália (guitarra portuguesa)] e, no caso de a vida aumentar muito, dar-lhe os meus direitos da Valentim de Carvalho. Direitos do[s] [discos] Gostava de ser quem era e Lágrima. Agradecia que dissesse isto ao Rui [Valentim de Carvalho]. Até quando Deus quiser. Se Deus quiser… Agradeço-lhe muito cá de dentro de mim a amizade que me deu e que me deu tanto! Também gostava que continuassem na mesma a seguir com o disco das cantigas americanas [Amália na Broadway]. Um beijinho muito grande e grande parte de mim. Obrigada por tudo!

Amália 

Também eu te sou grato, João, por uma amizade que soube a pouco e a tanto, que fez da minha vida mais vida e que foi, acima de tudo, certeza (dizem, alguns, que é isso que a distingue do amor...). Depois de ti acredito mais em Demócrito: “A amizade de um único ser humano inteligente é melhor do que a amizade de todos os insensatos.” Obrigado por me mostrares, do teu jeito irrepetível, uma mulher apaixonante, de seu nome Amália, que gostava de dar asas à voz de olhos fechados (tal como o seu pai quando tocava cornetim) e que, à imagem da bonita voz de sua mãe, não era capaz de cantar sempre da mesma maneira. Uma Amália que não morreu, voou (com o pôr do sol), como escreveu um dia Fernando Dacosta.

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