O início do fracasso de informação política sobre a vacinação da covid-19

O trabalho logístico será extremamente complexo, e incapaz de ser realizado apenas por centros de saúde e unidades primárias de saúde. É imperativa a articulação com as nossas farmácias e garantir a presença de profissionais farmacêuticos em todos os passos possíveis, dado que um dos maiores desafios será a recolha de dados acerca de efeitos adversos e processos de farmacovigilância.

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Reuters/DADO RUVIC

Depois de uma semana de desinformação jornalística e política acerca do plano de vacinação contra a covid-19, e da selecção dos primeiros grupos a serem vacinados, o presente texto serve como tentativa de clarificação acerca da tomada de decisão científica em termos de vacinação.

Na generalidade de vírus e patogénicos respiratórios, as formas mais agudas das doenças, com uma sintomatologia mais prevalente e incidente, ocorrem nas faixas etárias superiores. O novo coronavírus não é excepção. De facto, os indivíduos com mais de 60 anos apresentam uma taxa de mortalidade de 4.5%, enquanto que os com menos de 60 anos representam 1.4%; sendo que na população de idade inferior a 30 anos os valores rondam os 0 a 0.19%

Ora, em termos de vacinação, também a idade é um factor prevalente. É primeiro que tudo fundamental explicar que durante as fases de ensaios clínicos pré-obtenção da Autorização de Introdução no Mercado (AIM), o grupo SAGE (Strategic Advisory Group of Experts da Organização Mundial de Saúde) considera que todos os artigos publicados com os resultados dos ensaios clínicos de vacinação devem seguir as regras de GRADE (Grading of Recommendations, Assessment, Development and Evaluations), com grupos de voluntários amplos, e de capacidade de generalização dos resultados para a população geral. Assim, como é óbvio, grupos imunodebilitados — como idosos e pessoas imunossuprimidas — estão sub-representados nos testes de fase II e III, sendo que os efeitos adversos, e mesmo a eficácia da vacina nestes grupos, seriam impossíveis de transpor para a generalidade da população, algo fundamental no desenvolvimento em contra-relógio de uma vacina. Testes em faixas etárias específicas são realizados principalmente em fase IV de desenvolvimento, de farmacovigilância, numa fase mais tardia.

De facto, os mais idosos têm uma menor capacidade de desenvolver a chamada imunidade de memória, o tipo de imunidade obtida por vacinação. Isto explica-se por vários processos, como inflamaging — processos crónicos de inflamação prolongada no tempo — e imunossenescência — incapacidade de resposta das células apresentadoras de antigénio para criar imunidade a um agente patogénico, entre outros.

Há sensivelmente uma semana, o Expresso escreveu uma notícia extremamente irresponsável e que levou a todo o tipo de reacções políticas descontroladas, como a dos nossos primeiro-ministro e Presidente da República. As duas principais figuras de Estado afirmaram que não era para ser usado o parecer técnico que conclui que pessoas com mais de 75 anos e sem morbilidades não deveriam estar nos grupos prioritários. É absolutamente lamentável que a ciência sólida e a incapacidade de prever efeitos adversos da nova vacina nesta faixa etária, por falta de dados, sejam suplantadas por uma decisão política desenrascada à pressão da opinião pública.

É igualmente lamentável ter visualizado todo o tipo de comentário farmacológico e de fármaco-epidemiologia ser realizado por comentadores políticos, sem qualquer formação na área, a espremerem ao máximo o medo mais do que justificado da população, e inclusive o Plano Nacional de Vacinação ser ava(e)nçado num espaço de comentário de domingo à noite.

Agora, sobre o plano. Foi conhecido esta quinta-feira, 3 de Dezembro, e foram estabelecidos os grupos prioritários e quantas pessoas os integram. São 950 mil, repartidos por profissionais e utentes de lares, profissionais e internados em unidades de cuidados continuados, profissionais de saúde e de segurança, e doentes com mais de 50 anos e morbilidades que potenciam os casos mais graves da covid-19. Já o segundo grupo será formado por pessoas com idades entre os 50 e os 75 anos com patologias também de risco, mas de menor gravidade.

O trabalho logístico será extremamente complexo, e incapaz de ser realizado apenas por centros de saúde e unidades primárias de saúde. É imperativa a articulação com as nossas farmácias e garantir a presença de profissionais farmacêuticos em todos os passos possíveis, dado que um dos maiores desafios será a recolha de dados acerca de efeitos adversos e processos de farmacovigilância.

Por fim, mesmo que wishfull thinking, seria imperativo que mais farmacêuticos — os profissionais indicados a comentar e informar sobre uma vacina, fruto de tecnologia farmacêutica, produzida pela indústria farmacêutica e regulada por agências mundiais do medicamento — tivessem representação em órgãos de comunicação social. Isto se o objectivo for informação e não demagogia lucrativa com uma pitada de desinformação.

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