O sonho de aprender a voar “não deixou de existir”, mas a pandemia tornou-o “mais difícil”

No Dia Internacional da Aviação Civil, profissionais e alunos explicam os impactos da pandemia no sector da aviação. E lembram que, aos poucos, este deixa de ser “um mundo de homens”.

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Espera-se que o sector recupere em 2022 para os níveis de 2019 Global Flight School

Desde pequena que Margarida Durão tinha na ponta da língua a resposta à pergunta: “O que queres ser quando fores grande?” Hoje, aos 19 anos, a ambição continua a ser a mesma: “O sonho é ser comandante de aviação.” Por isso dedica-se a tempo inteiro ao curso de ATPL integrado (Airline Transport Pilot License, em inglês) na escola portuguesa Global Flight School (GFS), para conseguir a certificação necessária. Esta segunda-feira celebra-se o Dia Internacional da Aviação Civil.

O interesse pelos aviões vem de família. Tanto o pai como o padrinho estão ligados ao sector. “Desde pequenina que fui exposta a esta indústria. Acabou por instigar o bichinho dos aviões em mim”, conta ao PÚBLICO. E acrescenta: “Isto já para não falar do sentimento de liberdade que é voar e olhar para baixo e ver o mundo tão pequeno.”

Ainda que sublinhe que essa carreira nunca foi imposta pela família, agradece “todo o apoio” que lhe foi dado. Margarida Durão decidiu apostar no curso de piloto logo após terminar o ensino secundário e diz compreender “perfeitamente” que alguns pais queiram que os filhos passem primeiro pelo ensino superior. Porém, considera que “tirar um curso superior só para agradar a família não é o motivo certo”.

Mas pode ser uma rede de suporte, continua. A jovem lembra que na profissão de piloto, face a algum problema físico “fica-se sem carreira”, pelo que “ter um plano B, um curso superior, pode ser sempre uma ajuda”. Contudo, no seu caso, se tivesse de ir para a universidade, “nem saberia o que havia de estudar”. “Eu só gosto disto”, justifica. “Não há mais nada que me chame a atenção.”

A aluna começou a ter as primeiras aulas em Novembro do ano passado. Faz as contas e aponta que deve acabar o curso no Verão de 2021. “Idealmente seriam 18 meses, mas provavelmente vai estender-se por causa deste atraso provocado pela pandemia”, confirma. Assim como o que aconteceu com todos os alunos do país, o coronavírus obrigou a que os alunos da GFS tivessem aulas online para os módulos teóricos do curso. Também os voos de treino, que deveriam começar em Julho, foram atrasados para Setembro.

Portugal tem “condições de excelência"

São essas “preciosas” horas dentro do avião que, segundo Nélio Fidalgo, presidente do conselho de administração da GFS, ajudam a diferenciar a escola na parte prática do curso que compõe dois terços da duração total. Aberta aos alunos desde o ano passado, a escola tem como base de aulas o aeródromo de Ponte de Sor, no Alentejo, e não tem intenções de “ser uma escola de massas”. O presidente e comandante explica que o objectivo é “formar entre 50 e 60 alunos por ano e não 200 ou 300”. Só assim, afirma, se consegue “dar a atenção devida aos alunos quer na parte teórica, quer de voo”.

“Nós não usamos simuladores. Toda a parte prática é feita em avião e isso possibilita que os nossos alunos acabem o curso com cerca de 210 horas de voo real”, conta ao PÚBLICO. Para o comandante, “mais 50 ou 60 horas de voo [do que noutra escola] fazem toda a diferença quando se concorre a uma companhia, sobretudo sendo horas reais”. “Passam-se muitas coisas num voo que são diferentes de um simulador”, conclui.

Cerca de 80% dos alunos estão entre os 18 e os 25 anos e há quem já tenha feito o curso superior e “perceba que não é aquilo que quer e decida seguir o seu sonho”, testemunha Nélio Fidalgo. Ainda assim, a idade deixou de ser uma barreira. O presidente da GFS explica que se antes os concursos tinham como idade limite os 30 anos, agora não. Porquê? “As necessidades são tantas que os requisitos diminuem. O mesmo aconteceu com as horas de voo pedidas que foram diminuindo ao longo dos anos”, informa.

Segundo as estimativas da escola, todos os anos formam-se em Portugal cerca de 500 alunos. O país, segundo Ricardo Freitas, vice-presidente do conselho da administração da escola e director de instrução “tem condições de excelência” para a formação no campo da aeronáutica, desde condições meteorológicas às encontradas nos aeródromos. “É completamente diferente das condições que se encontram na Inglaterra, Alemanha e Suíça, que muitas vezes têm de fazer delays nos seus voos por causa das condições climatéricas”, complementa Nélio Fidalgo.

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Um terço da formação é referente a aulas teóricas, sendo que parte foi leccionada à distância em ano de pandemia Global Flight School

Entrave: condições financeiras

Assim como todo o sector da aviação, a formação também sofreu um impacto com a pandemia. Não porque os candidatos não queiram voar, mas por razões financeiras. Nélio Fidalgo explica que um curso de ATPL integrado, em Portugal, custa entre 65 e os 100 mil euros, no caso desta escola o valor é de 85 mil. Por isso, “cerca de 95% dos candidatos tem de recorrer a créditos bancários” e, numa altura de pandemia e incerteza, “tendo as pessoas menos meios e com os bancos a exigirem mais garantias”, “obviamente que isto se traduz num decréscimo” na procura por parte dos alunos.

Ricardo Freitas é claro: “O sonho não deixou de existir, mas agora está mais difícil.” Ainda assim, afirma que “esta é a terceira ou quarta crise” que assiste desde que está no mundo da aviação, e que “tudo acaba por voltar ao normal”. “O próprio mercado acaba por se adaptar”, considera. Nesse sentido, Nélio Fidalgo revela que “já se está a tornar visível que o mercado vai regressar ao que era” e a escola vai arrancar no próximo ano com mais duas turmas. Se tivesse de fazer uma previsão, o comandante diria que “em 2021 vai começar a retoma e em 2022 já se estará em pleno com a aviação a fazer lembrar o que foi no ano passado”.

Relativamente à capacidade do mercado absorver os formandos, “é como tudo na vida”, admite Nélio Fidalgo. “Se eu quiser ficar ao lado de casa e ingressar na TAP, vou ter de esperar por melhores dias. Mas também posso sair de Portugal e entrar numa Ryanair, Easyjet ou Emirates.” Ainda assim, lembra que o curso não se limita às companhias aéreas e que os alunos também podem fazer voos privados, de carga, de incêndios, entre outros exemplos.

Para Margarida Durão, “o curso não é difícil”. Mas rapidamente acrescenta: “É, sim, muito trabalhoso. Felizmente a motivação ajuda muito.” A uma parte teórica “maçuda e extensa”, condensada “em muito estudo em pouco tempo”, junta-se a parte prática que “supera as expectativas em termos de gosto”. Ainda que, ao longo dos últimos anos, o cenário se tenha vindo a alterar, a aluna admite que este ainda é quase “um mundo de homens”. Mas as coisas estão a mudar, acredita. “Cada vez vemos mais mulheres a chegarem-se à frente e a quererem tirar o curso”, por exemplo, na sua turma de 11 alunos, três são raparigas.

Ricardo Freitas compara o desfasamento de géneros na aviação com o mundo automóvel. “Havia uma ideia de que o homem estava mais talhado para a área mecânica. Mas as mulheres são tão capazes como os homens”, avalia. Nélio Fidalgo também diz notar “uma transição”, sendo que “hoje em dia já se vêem mais mulheres” na indústria, inclusive na instrução. Margarida Durão considera que “já se pode apontar para um cenário a 50/50” entre homens e mulheres no sector. “Basta as pessoas perderem o medo e essa mentalidade. Não há qualquer motivo para pensar dessa maneira”, considera a aluna. 

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