Desvendar os segredos do sistema imunitário permite ter ganhos em saúde

Dos estilos de vida à vacinação, da prevenção de doenças à promoção da saúde. Do desafio de aumentar a literacia da saúde ao acesso aos cuidados. Foram quase duas horas de debate no webinar “À descoberta do sistema imunitário”, realizado dia 26 de Novembro, organizado pelo Público, em parceria com a Multicare.

Mário Morais de Almeida é alergologista e coordenador do Centro de Alergia da CUF e começou por dizer que as pessoas com patologia respiratória já estão treinadas para cumprir as regras de prevenção recomendadas. O também secretário geral da World Allergy Organization e presidente da Associação Portuguesa de Asmáticos afirmou que “as regras como uma boa alimentação, uma boa hidratação e um reforço do sistema imunitário fazem todo o sentido neste momento. Estamos em plena época de vacinação anti-gripal e temos aproveitado para fazer a vacinação anti-pneumocócica e a vacinação oral. Existem hoje vacinas que vão permitir passar um resto de Outono e um Inverno mais tranquilos no que respeita às infecções do trato respiratório que são muito típicas nesta época”.

Cerca de 1/3 da população portuguesa tem alergias, mas a boa notícia para estes doentes é que “não têm falta de defesas. O que existe é um exagero de resposta contra os ácaros, os vírus e os pólenes”, explicou o médico. Nesta época do ano, o que os alergologistas fazem, adiantou, é prescrever medicação além da habitual para acalmar os sintomas. Nesta fase de pandemia, Mário Morais de Almeida sugeriu que é seguro manter a medicação anti-alérgica e que os doentes que ainda não estão a fazê-la, devem recomeçar a toma e falar com a sua equipa de saúde para os devidos aconselhamentos.

José Santos, médico e director clínico da Multicare, acrescentou que um dos aspectos fundamentais da prevenção primária tem que ver com a informação e a chamada literacia para a saúde. “Quanto maior informação a pessoa tiver, mais preparada está para lidar com a sua saúde. Quanto melhor saúde tiver, melhor sistema imunitário terá”, disse, sublinhando que existem vários aspectos que influenciam os determinantes de saúde. “Alguns são não modificáveis e determinantes fixos pois ainda não conseguimos mudar a idade, o sexo e os aspectos sócio-económicos. Depois, existem os factores modificáveis que se relacionam com os estilos de vida: alimentação, exercício físico e a redução do tabaco e do álcool. E uma das ferramentas para ajudar a modificar os estilos de vida está relacionada com a informação e a chamada literacia da saúde. Aliás, este webinar é uma das formas de fornecer informação fidedigna e de qualidade às pessoas”, afirmou.

Sabe-se que o sistema imunitário está presente em todas as acções humanas e é muito importante no combate às infecções assumindo também um papel primordial nas doenças reumáticas e, em particular, na artrite reumatóide e no lúpus. “Existe uma interacção complexa entre a genética e os factores ambientais que, em indivíduos susceptíveis, permite reconhecer o que é do próprio e provocar respostas naquilo que lhes é estranho”, explicou António Vilar, reumatologista e presidente eleito da Sociedade Portuguesa de Reumatologia. O que pode acontecer também em algumas doenças reumatológicas é a perda de tolerância. “O nosso sistema imunológico deixa de reconhecer algumas das nossas próprias células e ataca-as.”

O médico, também coordenador da Unidade de Reumatologia do Hospital Lusíadas Lisboa, destacou a artrite reumatóide como “a rainha das doenças inflamatórias crónicas” em que o papel da imunologia é muito relevante mas adiantou que as alterações imunológicas influenciam outras doenças e sistemas, como o eczema, a psoríase, a diabetes juvenil, a esclerose múltipla, a doença inflamatória do intestino e, naturalmente, as doenças reumáticas.

Mas afinal, como se define imunidade? “A imunidade pode ser individual ou de grupo. A nossa imunidade individual, no fundo, traduz-se na defesa que temos relativamente a um micro-organismo específico. O conceito de imunidade de grupo é transposto para uma população. Ou seja, qual é a percentagem de indivíduos dessa população que tem imunidade contra esse micro-organismo em específico”, explicou Pedro Simas, virologista e professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa. Exemplificando com a questão do coronavírus, o também group leader no Instituto Molecular de Lisboa (IMM) salientou que é pandémico porque praticamente 100% da população mundial nunca tinha contactado com este vírus e não tinha imunidade a nível individual e colectivo. Estamos ainda no princípio desta pandemia. “Estimamos que nem 5% da população da Europa, inclusive Portugal, tenha imunidade de grupo, mas felizmente parece que vamos ter vacinas.”

Mitos sobre a vacinação

A comunicação em ciência e em saúde é essencial. Em tempos de pandemia, assume uma particular relevância. “Alguns de nós não estariam a participar neste webinar se não fossem as vacinas que nos protegem contra a raiva, a tosse convulsa, a difteria, o tétano, a gripe e até aos vírus que provocam cancro, como o da hepatite B e o da papiloma humano”, exemplificou Pedro Simas, adiantando o enorme impacto que a vacinação tem tido em Saúde Pública ao longo das últimas décadas e que se traduz em números. “São salvos dois a três milhões de vidas todos os anos devido à vacinação e se existisse uma vacinação ainda mais abrangente ainda seria possível poupar mais um milhão e meio de vidas”, afirmou. “Foram as vacinas que permitiram erradicar a varíola, estamos em vias de erradicar a poliomielite e o vírus do sarampo pode ser o próximo”, adiantou.

No que respeita especificamente a uma futura vacina contra a Covid-19, o virologista aproveitou para esclarecer alguns mitos relacionados com a aceleração na investigação e na produção da mesma. “Mal esta nova doença respiratória foi identificada, passadas duas a três semanas, tínhamos o vírus isolado e o genoma completamente sequenciado, tínhamos um teste de diagnóstico molecular (RT-PCR) que é específico e igual em qualquer parte do mundo e a base científica das vacinas praticamente feita. Em poucas semanas, a estratégia estava delineada e, neste momento, temos um avanço tecnológico tão grande que nos permite ser rápidos“, assinalou, como mensagem de confiança às pessoas. “Um grande desafio que vamos ter é o de transmitir às pessoas que a vacinação é um dever de todos os cidadãos porque o que é que adianta termos feito todo este esforço – e vamos ter vacinas realmente boas – para depois decidirmos não tomar?”, defendeu.

António Vilar lembrou que a varíola – que foi erradicada – foi responsável pela extinção de alguns povos. “As crenças e o preconceito são completamente irredutíveis em relação à ciência mesmo que sólida. As pessoas habituam-se a falar muito nos efeitos secundários dos medicamentos [e das vacinas] mas há que fazer compreender o risco de não fazer nada, ou seja, o risco de deixar a doença seguir a sua evolução natural.”

Relativamente aos efeitos secundários que algumas pessoas associam à vacina da gripe, Mário Morais de Almeida esclareceu que “uma pequena percentagem de pessoas têm queixas no curto prazo, às 24, 48 horas, mas habitualmente são transitórias. A maioria das pessoas tolera muito bem e é importante que se faça a vacinação”. Uma vez que este ano não será possível vacinar todas as pessoas que gostariam, o alergologista recomenda algumas alternativas que também estimulem de forma eficaz o sistema imunitário e elogiou a actual colaboração entre cientistas e profissionais de saúde de todo o mundo. “Nunca se produziu tanto conhecimento, nunca houve tanta colaboração entre cientistas e investigadores daí que se consiga avançar muito mais rapidamente”, defendeu, alertando ainda para o cuidado que todos devem ter com as eventuais campanhas anti-vacinas. “Não é o momento para o fazerem. A vacinação não é só para cada um, é para a sociedade em geral”.

“Nada melhor do que a escola para começar a educar as crianças”, explicou José Santos. “Se pensarmos na modificação de estilos de vida, é muito mais fácil começar a incutir desde muito cedo. Relativamente a esta fase de pandemia, é também a escola que desempenha um papel na informação em prol da literacia da saúde”. A este respeito, Mário Morais de Almeida viria a acrescentar que a escola é muito importante para a socialização mas também para activar a resposta de tolerância aos vírus. “Não podemos encher as crianças com antibióticos para tratar infecções virais”, alertou. Foi ainda transmitida a ideia de que a imunidade se adquire no contacto das crianças umas com as outras para depois terem anticorpos que irão ajudá-las no futuro.

No que respeita às medidas de protecção para a Covid-19, Pedro Simas sublinhou que “o uso da máscara é um sacrifício tão pequeno para o bem comum da mesma forma que a vacina é essencial mesmo que nos cause algum desconforto que é natural”. O virologista mostrou algum optimismo quanto à questão da vacinação. Existem 13 projectos de vacinas, quatro deles estão muito bem encaminhados e nas próximas semanas vão surgir notícias sobre os outros. Portanto, vamos chegar a 2021 com um leque de opções complementares que vai ser muito bom.”

O sistema imunológico também tem um papel importante na vertente terapêutica de doenças. “Há 40 anos, quando eu entrei para a reumatologia, a grande arma era a cirurgia. Nos últimos 20 anos, os grandes avanços surgiram no conhecimento dos mediadores da inflamação que foram sendo conhecidos e nos permitiram actuar a vários níveis do mecanismo da doença. A reumatologia foi a especialidade onde surgiram os primeiros anticorpos neutralizadores de algumas das moléculas da inflamação”, explicou António Vilar.  O panorama de resposta no tratamento e na remissão da artrite reumatóide e de outras doenças reumáticas foi sendo modificado ao longo dos anos. Desde Dezembro de 1999 que o reumatologista trata doentes com bloqueadores a partir de anticorpos e garante que foi uma novidade para aqueles doentes para os quais não existiam outros recursos.

“Precisamos cada vez mais de cidadãos bem informados, que tenham educação para a saúde e acesso aos cuidados de saúde e a informação fidedigna. As pessoas necessitam de fontes credíveis nestes tempos em que vivemos uma pandemia de desinformação que é preciso combater”, salientou José Santos. Todas as ferramentas que permitam melhorar o acesso à informação são imprescindíveis. “É fundamental que os vários sistemas permitam que todo e qualquer cidadão tenha acesso à saúde. Esse é um determinante essencial e felizmente é modificável pois depende das vontades políticas e não só”, acrescentou.

A este respeito, Pedro Simas adiantou que “nunca houve tanta informação no mundo mas que é preciso ter em atenção que não corresponde à literacia que existe. Temos de sofrer uma revolução moral em termos de humanidade para sabermos avançar com todo o desenvolvimento tecnológico. Vivemos numa altura fantástica e há que acompanhar isso com muita inteligência”.

Consequências da pandemia

Será que o sedentarismo aumentou com a pandemia? E que impactos podem surgir no futuro derivados deste confinamento? “As pessoas têm de manter a actividade física. Ao ficarmos mais sedentários vamos ficar mais susceptíveis a doenças”, referiu Mário Morais de Almeida. Uma simples caminhada ou o agora muito intitulado “passeio higiénico” vão ser benéficos para o aparelho cardiovascular, respiratório e para a saúde das articulações. “Com isto, vamos sentirmo-nos melhor e ter uma série de ganhos”, sublinhou. Associada a uma boa nutrição, a prática de actividade física vai favorecer a saúde do nosso sistema imunitário. “Nos últimos tempos, os índices de massa corporal aumentaram para algumas pessoas e o facto de as pessoas terem engordado vai ter consequências na própria resposta que temos à infecção viral. Temos de começar a modelar a nossa vida para que fique tão próxima quanto possível dos bons comportamentos ou até melhores dos que tínhamos antes.”

Neste webinar houve também a necessidade de focar a importância da saúde mental e das consequências psicológicas que a pandemia pode vir a trazer no futuro. António Vilar partilhou alguma preocupação com o isolamento dos idosos que deixaram de estar com os seus netos e outros familiares por pertencerem a grupos de risco, e também com as crianças que necessitam de socializar com outras e que estão mais privadas desse contacto. “Julgo que a condição mental é pouco falada”, referiu.

“De certa forma, as áreas psicológicas sempre foram um parente pobre em termos de acesso. Para a companhia que represento, a questão do acesso aos cuidados de saúde é extremamente importante. Neste momento, com os adventos das tecnologias, disponibilizamos, de forma absolutamente gratuita, o contacto à distância de um telefonema ou de uma videochamada com vários profissionais de saúde, incluindo psicólogos”, referiu José Santos. A Multicare identificou um crescimento da procura das linhas de apoio por via da pandemia como uma forma das pessoas terem acesso a informação e resolverem alguma dúvida.

Os “super-poderes” da imunidade

Os especialistas convidados passaram mensagens de confiança aos leitores. “Existe toda a segurança nos hospitais e nos centros de saúde. As pessoas têm de receber os seus cuidados de saúde. Em alguns casos, é possível fazer contactos à distância e a telemedicina está a ser mais generalizada”, referiu Mário Morais de Almeida.

José Santos reforçou que o tema das doenças crónicas não transmissíveis também está muito ligado aos estilos de vida. “É fundamental que continuem a privilegiar o acesso aos cuidados e não os negligenciem, visitem os seus médicos e não deixem de ir às consultas. Quanto mais bem controlado estiver o estado geral de saúde, melhor a imunidade e melhores condições terão para responder esta pandemia enquanto não chega a tão falada e desejada vacina.”

Mário Morais de Almeida sublinhou que o sistema imunitário tem de ser estimulado e treinado (através de vacinas). “O sistema imunitário tem de ser acarinhado. Precisamos de ter umas boas horas de sono, de praticar exercício físico e de ter outras actividades. Não é bom estar a ver e a ouvir notícias sobre saúde durante horas e de forma contínua”, alertou. O alergologista recomendou que apesar de podermos dedicar algumas horas a ver notícias sobre a pandemia, há que ter confiança de que os profissionais vão prestar os melhores cuidados possíveis para controlar esta infecção viral e que a vacina que venha a estar disponível será “segura e eficaz”. Ao dedicarmo-nos a outras actividades lúdicas, vamos ganhar uma espécie de ‘super-poderes’ para conseguir enfrentar os próximos meses – e quem sabe anos – desta pandemia, adiantou.

António Vilar reforçou a ideia de que “os suplementos para reforçar o sistema imunitário são formas enganadoras de transmitir uma ideia ao nosso público” e que os doentes crónicos não devem parar a sua medicação habitual. Em caso de dúvida, devem contactar os seus médicos. “Hoje, a aplicação do portal da saúde chamada MySNS Carteira é uma boa forma de o colocar em contacto com o seu médico e tem também outras particularidades muito úteis para fazer pedidos, marcações de consultas, pedir receituário, entre outros”. Os doentes crónicos “não podem ficar para trás” daí que seja muito importante utilizar todas as ferramentas que estão hoje ao seu dispor, assinalou o reumatologista.

Como mensagem final, Pedro Simas afirmou: “O vírus não sabe o que é o Natal e eu apelo às pessoas para terem muito cuidado. Senão, o preço a pagar pode ser muito alto”, concluiu, transmitindo a ideia de que seria essencial não passarmos por uma terceira vaga de Covid-19 em Portugal e que os cuidados de todos devem ser mais redobrados nesta época em que as famílias se juntam.