Leipzig prepara feira do livro sob signo da pandemia com Portugal em destaque

A cidade alemã de Leipzig, em plena pandemia, prepara a próxima edição da feira do livro, prevista para Maio de 2021, com Portugal como país convidado e a vontade de se abrir a uma nova geração de escritores.

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A última edição da feira ocorreu em 2019 e foi dedicada à República Checa LUSA/FILIP SINGER

No segundo piso da livraria Connewitzer lê-se “Saramago”. O nome do Nobel português aparece escrito numa cadeira, alguns dos seus livros surgem numa estante. Está também Lobo Antunes e há a promessa da chegada de outros autores portugueses nos próximos meses.

Traduzir e fazer chegar mais títulos de autores de língua portuguesa a este e a outros espaços de leitura, na Alemanha, é um dos principais objectivos da participação de Portugal como país convidado na Feira Internacional do Livro de Leipzig, em 2021. Mas a tarefa não tem sido fácil.

Com a edição deste ano cancelada e, a do próximo, adiada para final de Maio, a segunda maior feira do livro do país e uma das mais importantes da Europa, com uma tradição de mais de 500 anos, está a escrever uma nova página na sua história. A improvisação não é novidade para o seu director, Oliver Zille, mas, ao contrário de anos anteriores, em que alguns pormenores tiveram de ser ajustados, agora, confessa o responsável, é necessário “desenhar toda uma feira sob condições impostas pela pandemia”. A pouco mais de meio ano da sua realização, uma coisa é certa, “a pandemia de covid-19 vai, inevitavelmente, afectar a estrutura da próxima Feira do Livro de Leipzig”.

Com uma montra em que as ilustrações das capas dos livros se misturam com as cores de máscaras de protecção artesanais, penduradas com molas numa corda, há quem acredite que um futuro em suspenso é a única garantia possível nesta altura.

A conselheira cultural da Embaixada de Portugal em Berlim, Patrícia Severino, não está assustada com a participação. “A partir do momento em que as pessoas sabem que se cumprem as regras de segurança e sanitárias, elas querem estar. Acho que o público tem uma vontade imensa, maior do que antes até, de poder ir ao cinema, de poder encontrar autores, ler livros, estar em concertos”, refere a comissária para a participação de Portugal como convidado de honra, em declarações à agência Lusa.

O foco vai manter-se, assegura Zille, “nos autores e nos leitores”. Por isso, na preparação da feira, “estamos a ter um cuidado especial em dar visibilidade aos autores e envolver o público no evento como um todo”, garante à Lusa. Como nas edições anteriores, e porque “nada pode substituir a interacção das pessoas”, está prevista a festa da leitura de Leipzig (Leipzig liest) e a “Manga Comic-Con”.

“Lepzig fica mais pobre sem a feira do livro”, desabafa a habitante local Marlene Pereira. A responsável do café Portus Cale descreve uma cidade que, durante uma semana, se transforma. “Há gente mascarada, pessoas que vêm de todo o lado”, conta, “só espero que o vírus deixe que ela aconteça no próximo ano, ainda por cima com Portugal no centro.”

Os principais desafios foram, para já, o cancelamento da edição deste ano, e a mudança de data da próxima edição de 2021, de Março para final de Maio, com o objectivo de aumentar as possibilidades de uma feira presencial, tirando também partido dos espaços ao ar livre da “Leipziger Messe”, o recinto de feiras de Leipzig.

“Isso foi o mais avassalador”, conta Patrícia Severino, “porque tínhamos [para a edição de 2020] quase duas dezenas de autores programados, a deslocarem-se de vários países, muitos eventos literários; esperava-se a presença da nossa ministra da Cultura para a apresentação do conceito do projecto, ou seja, uma primeira grande conferência de imprensa de apresentação do projecto.”

Mas, mesmo sem livro de instruções, um adiamento da participação de Portugal como país convidado foi excluído porque, destaca a directora do Camões Berlim, “estamos sob uma circunstância diferente, na qual temos de nos enquadrar”.

A incerteza do momento actual afecta viagens, períodos de quarentena, participações em eventos fechados e até reuniões de preparação para que tudo esteja a postos no próximo ano.

Pendente das notícias até ao último minuto, a presença de quatro escritores portugueses no “Literarischer Herbst” (Outono Literário) de Leipzig, uma das iniciativas prévias à feira, acabou por ficar garantida. Com lotações adaptadas, impostas pela pandemia, as sessões levadas a cabo na “Literaturhaus Leipzig

Haus des Buches” (Casa da Literatura) esgotaram, e a organização portuguesa pôde voltar a respirar de alívio.

“Os leitores alemães são fantásticos”, desabafou a escritora Dulce Maria Cardoso, que escreveu O Retorno (2012) durante uma residência literária em Bamberg, na Baviera, precisamente a sua primeira obra a ser editada em alemão, já no próximo ano.

“Algo que me espantou foi que eles conseguiam estar sentados a ouvir-me ler em português mais de uma hora, sem perceberem a língua, só pelo prazer de ouvirem alguém ler. Em Portugal, quando se fazem leituras de mais de dez minutos, começa tudo a mexer-se”, descreveu.

Com um segundo livro, Eliete (2018), a caminho da tradução, com os direitos já adquiridos, a autora explicou à Lusa que o processo foi “bastante difícil”, acrescentando que, “até há uns tempos, o mercado alemão fugia mesmo da literatura portuguesa”.

“Estas coisas não se fazem sem investimento, nada disto acontece sem investimento. Há muitos autores por esse mundo fora, há países com tradições literárias muito mais fortes e, se não houver uma política cultural do Estado português, é dificílimo. Mesmo assim, acho sempre que a literatura portuguesa faz um brilharete comparado com o investimento que é feito”, realçou com agrado.

Talvez tenha havido, nos anos de 1990, apostas que não correram tão bem, tentou justificar Dulce Maria Cardoso. “Portugal é um país que ainda está a construir a sua identidade literária” e Saramago e Lobo Antunes “não chegam”, tem de haver “um corpo forte e coeso”, afirmou.

Foi num curso de tradução literária, em Frankfurt, com a professora Ray-Güde Mertin, tradutora de Os Cus de Judas (1979), de Lobo Antunes, e Ensaio Sobre a Cegueira (1995), de Saramago, que Michael Kegler começou o seu percurso.

O tradutor de várias dezenas de obras — a primeira das quais de Manuel Tiago/Álvaro Cunhal, Cinco Dias, Cinco Noites (1975), em 1998 — lembra que precisamente um ano antes, em 1997, Portugal tinha sido “país tema” na feira do livro de Frankfurt, com “mesmo muito sucesso”, apresentando então uma “terra incógnita” para o público de língua alemã.

“O grande lance de Portugal foi um programa de apoio à tradução que funciona até hoje, várias vezes copiado por outros países, entretanto. Diz-se que deste programa resultaram mais traduções de Saramago, que certamente ajudaram a ganhar o Nobel no ano a seguir, em 1998”, adiantou à Lusa.

Foi precisamente em Frankfurt, depois de uma iniciativa paralela à feira, na qual participaram outras duas dezenas de autores, que José Saramago recebeu a notícia do prémio. A conquista chegou-lhe através de uma hospedeira, no aeroporto, a poucos passos de embarcar para Portugal.

“Só que ninguém mais se lembra dos outros que tinham estado com ele no palco, na Ópera de Frankfurt. Urbano Tavares Rodrigues, Mário de Carvalho, Alice Vieira. Ninguém mais se lembra da presença de Mário Cláudio, Rui Zink, Inês Pedrosa e outros naquele ano. A meu ver, cada um deles merecia ter livros em alemão, porque têm algo a dizer também para aqueles que não lêem em português”, lamentou o tradutor.

A comissária do projecto “Portugal País Convidado da Feira do Livro de Leipzig” destaca “a importância do programa especial, dirigido a editoras do universo de língua alemã, que faz parte da estratégia de preparação para a edição de 2021, levada a cabo pelo Camões — Instituto da Cooperação e da Língua [CICL], a Direcção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas [DGLAB], o Turismo de Portugal e a AICEP”, a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal. Deste programa de apoios à tradução e edição, terão resultado cerca de 50 títulos a editar em países de língua alemã.

Para Michael Kegler, porém, este é “um caminho árduo” que ainda requer “muito trabalho”. “Estamos em concorrência com mil outras literaturas no mundo, todas elas quase invisíveis comparadas com literaturas de língua inglesa. Por enquanto, as literaturas portuguesa e africana de língua portuguesa continuam a ser, salvo algumas excepções, uma coisa de special interest, o que é injusto, porque temos muita coisa a contar ao mundo”, lamentou o tradutor.

O escritor Afonso Reis Cabral, que terá o primeiro livro editado em alemão em Março do próximo ano, Pão de Açúcar (2018), defende que a feira pode bem servir para ajudar a conhecer a literatura em português e “quebrar preconceitos”.

“A literatura portuguesa acaba por ser muito pouco representada noutros países. Os editores internacionais têm ideia, possivelmente correcta, porque é um círculo vicioso que se gera, de que os autores portugueses não vendem e, como não vendem, os direitos não são comprados. Os únicos que o quebraram foram, obviamente, o Saramago e o Lobo Antunes. Mas ainda se gera bastante essa ideia”, acredita o escritor, que participou no “Outono Literário” de Leipzig.

O editor Jurgen Schütz, da Septime Verlag, editora de Viena, na Áustria, admite à Lusa o interesse da sua casa nos “clássicos”, como José Saramago, Fernando Pessoa ou Eça de Queirós, sublinhando estar “sempre à procura de literatura internacional sofisticada”.

“A feira será muito importante para a literatura portuguesa em países de língua alemã. Editoras pequenas, como a Septime, que publicaram autores portugueses, não têm, em muitos casos, os meios financeiros necessários para os transportar até uma vasta audiência. Com Portugal como país convidado em Leipzig, podemos abrir muitas portas juntos”, acredita Schütz.

A editora de língua alemã tem publicados dois livros de José Luís Peixoto, Uma Casa na Escuridão (2012) e Cemitério de Pianos (2016). Galveias terá uma versão em alemão em 2021.

“Tive várias oportunidades para participar em actividades à volta desses livros e foi sempre muito agradável”, disse à Lusa o escritor José Luís Peixoto, enquanto passeava os olhos pelas prateleiras da livraria Connewitzer.

“Foi sempre o momento em que se juntaram pessoas com um interesse especial por Portugal. Não só portugueses, ou pessoas que falam português, mas também alemães que têm uma relação com o nosso país, que não são assim tão poucos”, comentou.

Tal como aconteceu nas feiras do livro de Guadalajara, no México, ou de Bogotá, na Colômbia, a presença forte de Portugal, segundo o autor, vai trazer ao país mais visibilidade e mais traduções. “É uma estratégia muito interessante de difusão de literatura portuguesa e também de Portugal. A literatura leva Portugal nas suas múltiplas dimensões. Acredito que, na Alemanha, haver uma compreensão daquilo que é Portugal e do que é ver o mundo da nossa perspectiva, acaba por ser vantajoso em aspectos insuspeitos e que são os do quotidiano, da economia e de áreas que aparentemente são distantes da cultura e da literatura”, assegurou.

Para o tradutor Michael Kegler, o grande desafio é “continuar a posicionar a literatura de língua portuguesa no circuito ‘normal'”, para que não seja lida apenas “dentro do nicho dos adeptos, fãs de Portugal, do Brasil ou de África”.

O director da feira do livro de Leipzig, Oliver Zille, defendeu que, depois da apresentação de “importantes autores” na Alemanha, nos anos de 1990, é agora o tempo de “oferecer uma plataforma a uma geração mais nova de escritores, e apresentá-los ao mundo de falantes de língua alemã”.

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