O vídeo da professora Hoff Sommers é falso

Ainda não foi desta que fiz um desenho da Terra redonda. Lamento a lentidão. É rápido dizer um disparate, mas desfazer uma mentira demora tempo. E apresentar a sra. Hoff Sommers exige mais do que uma linha.

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Graças a uma leitora do PÚBLICO, vi os vídeos da professora Christina Hoff Sommers, que há anos se dedica a dizer que a desigualdade salarial entre homens e mulheres é um mito inventado por “celebridades, feministas e políticos” e que tudo é “hype, spin”, “pseudo-factos” e “activismo”.

Hoff Sommers não diz que os homens e as mulheres ganham o mesmo — seria demasiado ridículo. O que diz é que a diferença salarial é pequena e não tem nada a ver com injustiça ou discriminação.

Num dos seus vídeos — There is No Gender Gap —, a professora lança uma tese, dois exemplos e uma pergunta. 1. A tese: a diferença salarial resulta das escolhas que homens e mulheres fazem em relação às suas carreiras. 2. Os exemplos: a) nos EUA, os enfermeiros ganham mais 18% do que as enfermeiras porque escolhem especialidades mais bem pagas, trabalham mais horas e mudam mais de cidade, b) os cinco cursos universitários para as profissões com os salários mais altos têm sobretudo rapazes e os cinco cursos para as profissões com os salários mais baixos têm sobretudo raparigas. 3. A pergunta: se os salários são a maior despesa das empresas e se as mulheres ganham menos, porque é que as empresas não contratam só mulheres?

A mensagem de Hoff Sommers é tão simples que parece perfeita, tiro-lhe o chapéu.

Mas é falsa.

Antes de tudo, é útil dizer que Hoff Sommers é uma professora que trabalha para duas organizações ultra-conservadoras americanas, os think tanks American Entreprise Institute e a American Heritage Foundation, “casa” de influentes políticos e analistas neoliberais. É daí que saem textos, tweets e vídeos feitos a pensar no clique fácil das redes sociais e do YouTube que, com a ajuda de pessoas como os irmãos Koch — os bilionários que investiram milhões a defender que as alterações climáticas são um mito — espalham ideias em formatos simples e apelativos contra o casamento gay e a favor da liberalização da venda de armas de fogo ou da construção do muro entre os EUA e o México.

Formalmente, são organizações apartidárias. Na prática, conduzem uma agenda anti-sistema, por vezes anti-democrática, “trumpista” e, pelo caminho, alimentam a audiência de Bolsonaro. Não é por acaso que há vídeos da professora com legendas em português do Brasil. Sem surpresa, Hoff Sommers tem seguidores em Portugal. Só o vídeo recomendado pela leitora do PÚBLICO tem 6,2 milhões de visualizações, é natural que alguns sejam daqui. 

Dirão: qual é o problema de Hoff Sommers ser paga para fazer vídeos com as suas opiniões? Nenhum. Cada um defende o que quer. Não vale é fazer de conta.

Para usar o vídeo de Hoff Sommers como prova de que a desigualdade salarial entre homens e mulheres é um mito, temos — como ponto de partida — de reconhecer que a professora é uma neoliberal que põe o Chega e a Iniciativa Liberal a um canto com KO no primeiro round. Hoff Sommers não é uma académica com ideias diferentes; é uma fanática que nega e distorce a realidade.

Porquê um KO tão rápido? Basta dizer que Hoff Sommers defende que os soldados que combateram nas guerras americanas são um bando de subsídio-dependentes — leiam o seu artigo Once a Soldier, Always a Dependent (há poucas semanas, Trump disse uma coisa parecida). Nesse artigo, a professora diz que os antigos combatentes têm com o Estado uma relação igual à que as crianças têm com os pais e sugere que o stress pós-traumático de guerra é uma modernice do século XXI, pois ela não se lembra de os soldados da II Guerra Mundial terem ido chatear o Estado com esse tipo de queixas.

Claro que há activismo no debate sobre a desigualdade salarial entre homens e mulheres. E há exageros. E houve cálculos mal feitos. Mas a conferência de Davos, os bancos centrais europeus, o Banco Mundial, o FMI, os conselhos de administração das grandes empresas, o governo alemão de Angela Merkel ou a Organização Mundial do Trabalho não foram picados pelo bicho do politicamente correcto — nenhuma dessas instituições defende ideias radicais, de esquerda ou feministas. Da mesma forma que sabemos que em Março o tempo começa a aquecer porque se aproxima a Primavera, sabemos que estas são instituições conservadoras. E sabemos também que, sendo conservadores, dedicam tempo à procura de soluções para resolver o problema do gap salarial entre homens e mulheres. Estão todos doidos e a perder tempo com uma coisa que não existe?

Ainda não foi desta que fiz um desenho para mostrar que a Terra é redonda. Lamento a lentidão. Desfazer uma mentira demora mais tempo do que dizê-la. No próximo sábado, regresso ao tema. O que não falta são argumentos para mostrar a falsidade do vídeo.

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