Mais um ano, mais um concurso para os médicos escolherem a especialidade, mais um vazio

Mais de 2279 médicos recém-formados aguardaram a sua vez para escolher uma especialidade, mas cerca de 400 não tiveram lugar. O concurso ficou cheio, é verdade, mas à semelhança de outros anos veio vazio de estratégia para o país.

Foto
rui gaudencio

Todos os anos, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) recebe milhares de médicos interessados em escolher uma especialidade médica, a forma mais capacitada de prestar cuidados de saúde em contexto hospitalar e extra-hospitalar. Esta escolha é feita através de concurso público anual: os candidatos fazem a sua inscrição com um ano de antecedência, através da realização de um exame nacional de seriação, e dedicam um ano de serviço enquanto internos de formação geral, por onde passam por vários serviços dando consultas, fazendo urgência, prestando cuidados em enfermaria e indo ao bloco operatório. No final do ano passado, 2279 médicos estavam inscritos para a escolha da especialidade em Novembro de 2020 e realizaram todos os passos descritos...E, no início do Novembro, o Governo divulgou o mapa com apenas 1830 vagas disponíveis.

Então, se neste período de tanta carência de recursos humanos no SNS, o Governo já sabia, com mais de um ano de antecedência, que havia mais candidatos do que vagas, porque é que não criou condições para se receber estes médicos no SNS? A resposta é simples: ano após ano, o SNS continua sem implementar uma estratégia para a formação médica e, ano após ano, os concursos ficam cheios, é verdade, mas continuam vazios de estratégia para os recursos humanos.

Este fenómeno acontece desde 2015. Este foi o ano em que pela primeira vez tivemos menos vagas do que candidatos. Menos 122, para sermos precisos. Daí em diante, o problema foi-se adensando e os números e os problemas acumularam-se de forma exorbitante. Ficaram sem vaga 370 médicos em 2016, 635 médicos em 2017, 693 médicos em 2018, 564 médicos em 2019 e 394 médicos em 2020. Um pouco absurdo tendo em conta as carências do SNS, não é?

Infelizmente, os sucessivos Governos acabam por formar aqueles que conseguem a cada momento, independentemente do número de faculdades e estudantes de Medicina, do número de médicos oriundos de outros países e, acima de tudo, independentemente das necessidades do SNS.

Uma prova de que o número de especialistas em formação não acompanha as necessidades do país — nem em número, nem em especialidade — é o facto de o SNS apresentar menos de metade dos médicos de que o país dispõe. Na verdade, o rácio de médicos por mil habitantes no SNS é de 2,3, e o rácio de médicos por mil habitantes em Portugal é de 4,8. Se houvesse uma estratégia clara para a formação médica, não estaríamos desprovidos de médicos no SNS e as faltas ou os excessos seriam esporádicos. Estaríamos certamente aptos a responder às necessidades de saúde dos portugueses com muita maior capacidade e adaptabilidade.

Foto

A solução tem vindo a ser debatida por diversos especialistas da área. É comummente aceite que se exigiria uma coordenação entre o Ensino Superior e a Saúde, duas pastas a cargo de dois ministérios distintos. A um caberia entender as necessidades de saúde da população em cada região demográfica e a sua evolução a médio e longo prazo. Ao outro caberia encontrar as condições para formar estudantes no número adequado para que o país não desperdiçasse recursos. Paralelamente, é do interesse do Ministério da Saúde investir muito mais nas condições que o SNS oferecesse, não só para garantir o primado do doente, mas também para que não ocorram êxodos de médicos para o sector privado ou estrangeiro, garantindo deste modo uma fixação e concentração de recursos e de massa crítica naquele serviço que, de forma mais acessível, atende a população portuguesa.

Ao Governo, exige-se uma mudança de paradigma. O “gastar” dinheiro na saúde tem de passar a ser olhado, definitivamente, como um investimento. Um investimento no tempo e na qualidade de vida das pessoas, com resultados também para a economia e para o país. Uma sociedade constituída por pessoas mais saudáveis significa que serão mais aqueles em condições para trabalhar, mais anos e melhor, gerando mais riqueza, contribuindo para uma sociedade mais competitiva mas também mais sustentável e capaz de ajudar os desfavorecidos.

A estratégia de proletarizar a profissão médica, depauperando os médicos e empurrando-os para outros subsistemas, um erro. Esta estratégia trouxe-nos ao ponto em que nos encontramos hoje, obrigando-nos a reflectir se queremos realmente investir no SNS, combater esta pandemia e os desafios vindouros contra os quais teremos inevitavelmente de lutar ou se vamos simplesmente baixar os braços e afundar o país numa crise económica, política e de saúde pública. Não tenhamos dúvidas, a resposta a esta crise económica e social dependerá, em grande medida, da nossa capacidade de solucionar vários desafios de sustentabilidade do nosso SNS, sendo este aquele que mais define o seu carácter: as pessoas que o constituem.

Sugerir correcção
Comentar