Web Summit: como desperdiçar 11 milhões de euros em três dias

Não é colocando no bolso de Paddy Cosgrave 11 milhões de euros para uma cimeira virtual que fazemos a diferença que Lisboa e, já agora, o país, precisa.

Termina hoje a Web Summit, uma iniciativa que custou ao erário público 11 milhões de euros (oito milhões de euros por parte do Governo e outros três da Câmara Municipal de Lisboa), num contexto em que este evento, que se realizou de forma inteiramente digital, acabou por não trazer pessoas a Lisboa, nem por ajudar a nossa economia, nomeadamente os sectores mais afetados por esta crise: hotelaria, restauração e comércio.

O momento absolutamente excepcional que vivemos, causado pela covid-19, deixou em suspenso inúmeras atividades e eventos, e era impossível que uma grande cimeira tecnológica como a Web Summit não fosse igualmente afectada. É certo que em 2018 estávamos todos longe de imaginar que em breve estaríamos a viver uma das maiores crises sanitárias das nossas vidas, que colocaria tudo em suspenso.

Manda a prudência, sobretudo quando se gerem dinheiros públicos, acautelar que qualquer relação contratual salvaguarde o interesse público. Se a Web Summit, num contexto em que se altera profundamente os pressupostos do evento e em que não há retorno para a hotelaria, restauração, comércio ou outros serviços que justifique o investimento realizado, não foi afinal o pote de ouro no final do arco-íris que iria contribuir para a economia portuguesa, é incompreensível que o Governo e a Câmara Municipal de Lisboa não tenham considerado a actual crise de saúde pública como um motivo mais do que válido para renegociarem o valor a investir, ainda para mais quando o próprio contracto efetuado, de acordo com o que tem sido veiculado, prevê a dispensa de pagamento por motivos de “força maior”. Mas, afinal, que “força maior” poderá existir se não a crise sanitária, social e económica que atravessamos e cujos impactos reais são ainda incalculáveis?

Se, nos anos anteriores, ainda podíamos conceder quanto à opção política de que se justificava investir 11 milhões de euros por ano para a que a cimeira tecnológica ficasse em Portugal até 2028, é absolutamente incoerente que a Câmara Municipal de Lisboa se dê ao luxo de gastar três milhões de euros num evento digital de três dias quando só este ano já fecharam 115 lojas na Baixa Lisboeta, segundo a Associação de Dinamização da Baixa Pombalina. E aqui não falamos apenas de 115 negócios que fecharam, falamos de pessoas e famílias que, subitamente, ficaram sem qualquer sustento. Se compararmos os apoios dados por este executivo às 8000 empresas no município, a sua maioria da restauração e do comércio (20 milhões de euros disponibilizados para apoiar milhares de negócios e milhares de famílias), só podemos concluir que as contas estão, sem dúvida, a ser mal feitas e as prioridades mais do que invertidas.

E, aqui chegados, não descuramos que existe um problema mais profundo que afecta Lisboa e o país no que respeita à excessiva dependência que criou do turismo. Teria sido importante que este executivo tivesse repensado as políticas de desenvolvimento da cidade, de forma a que esta não fosse tão dependente do turismo, tendo-a como única fonte de rendimentos.

Mas somar a essa ausência de visão estratégica para a cidade uma opção política que desconsidera que não somos um país rico e que 11 milhões fazem falta, é privilegiar quem não precisa, em detrimento de quem a este tempo foi já afectado pela crise. E que Paddy Cosgrave o tenha exigido ao país é absolutamente imoral.

Em Lisboa, tal como em todo o país, multiplicam-se manifestações e concentrações de trabalhadores de diversos sectores reivindicando mais apoios para conseguirem fazer frente a esta crise sem precedentes. Exemplo disso são os profissionais da cultura, que vivem hoje na completa incerteza – basta olharmos para a União Audiovisual, grupo informal criado para ajudar trabalhadores do sector da cultura, que está a distribuir mensalmente cabazes de comida a 250 famílias, das quais 110 estão na região de Lisboa!

Não podemos, por isso, acenar com 11 milhões de euros a quem não teve qualquer tipo de pudor de beneficiar de dinheiros públicos para um evento, repito, virtual, quando o comparamos a todas as verbas destinadas, por exemplo, em Lisboa, ao combate às exclusões, à defesa dos direitos humanos, à integração, à inclusão, à cultura, à educação e ao desporto, nos últimos anos.

Já o dissemos muitas vezes que Lisboa tem de ser uma cidade para as suas pessoas. O facto de Lisboa ser a cidade que acolhe grandes eventos, como a Web Summit, mas que não tem depois a capacidade de dar resposta às necessidades e desafios atuais, levanta muitas questões sobre esta forma de política. A vaidade ou o deslumbramento em política vale mais do que a justiça social? Se para uns a resposta é mais do que óbvia, para outros parece levantar grandes (e graves) dúvidas. A verdade é que poderia enumerar aqui as muitas áreas e medidas nas quais, mais do que nunca, estes milhões fariam verdadeiramente a diferença, mas uma coisa é certa, não é colocando-os no bolso de Paddy Cosgrave que fazemos a diferença que Lisboa e, já agora, o país, precisa.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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