Tucídides e a China

Com a opinião pública americana excitada pelas primeiras refregas e com a perspectiva de poderem vir a acontecer iniciativas belicosas por parte da China na orla marítima, vai ser preciso um Péricles muito convincente em Washington para impedir o início das hostilidades. Porque, accionada a armadilha e iniciadas as hostilidades, é bem difícil de imaginar como estas acabam.

Uma das referências preferidas dos comentadores geopolíticos nos últimos anos quando se referem à relação entre os EUA e a China é a chamada armadilha de Tucídides. Para os menos atentos, e correndo o risco de me alongar sobre o que se tornou uma conversa da moda, relembra-se que Tucídides era um general da antiga Atenas do século V antes da nossa era. Um general que se notabilizou com sucesso na Guerra do Peloponeso, também conhecida como a guerra entre Atenas e Esparta. Uma guerra que vai envolver todas as cidades gregas da altura durante cerca de 30 anos em alianças bipolarizadas e que termina com a derrota de Atenas, mas provocando a decadência geral do mundo grego. Tucídides que, no decorrer da guerra e mesmo com as vitórias que obteve, é condenado ao degredo por ter falhado uma operação militar, vai aproveitar a sua prisão numa calma ilha grega para escrever com grande detalhe a história da guerra em que participou. A sua Guerra do Peloponeso é hoje um monumento da cultura humana, estudado ao pormenor por historiadores e estrategas militares.

A armadilha de Tucídides consiste, então, no dilema com que se depara uma potência militar dominante (neste caso Esparta) que, quando se vê confrontada por uma nova potência concorrente (Atenas) que desequilibra a relação de forças económica e militar existentes, se pode sentir levada, como potência dominante, a entrar em guerra com a emergente. No caso da Grécia Antiga, o desafio à guerra lançado, em despeito, por Esparta, vai ser galhardamente correspondido por Atenas, apesar da lúcida intervenção do grande general ateniense Péricles que tentou, sem sucesso, chamar a atenção para os perigos de uma guerra sem sentido. Ao não lograr arrefecer os ânimos belicosos das duas potências, Péricles não conseguiu impedir o início do que se iria tornar na impiedosa autodestruição de ambas. Morrerá pouco depois vítima de uma pandemia que Tucídides descreve com grande rigor científico e que quase parece a nossa covid. A armadilha da guerra vai acabar por afectar não só Atenas e Esparta, mas todas as cidades gregas, abrindo caminho para a supremacia da Pérsia e, logo a seguir, da Macedónia.

No número deste mês de Dezembro, a revista Foreign Affairs recupera o tema da armadilha de Tucídides adicionando um outro exemplo histórico, o do confronto entre a Inglaterra e a Alemanha, que levou à Primeira Guerra Mundial. O Império Inglês, senhor dos mares e do mundo, vê a Alemanha, então recentemente unificada sob a direcção da militarista Prússia, crescer em poderio comercial e militar e a intrometer-se na exploração colonial. E este crescimento da Alemanha vai ser tão rápido como avassalador. Em pouco mais de 30 anos rivaliza em poderio industrial, comercial e militar com o grande Império Vitoriano. E, apesar das profundas ligações económicas e mesmo familiares entre as elites e as monarquias reinantes das duas Nações, o despeito inglês e a ousadia alemã levaram a Europa sleepwalking para a sua autodestruição, abrindo o caminho ao estabelecimento da supremacia dos Estados Unidos da América. Apesar de na altura parecer impossível que alguém tivesse a loucura de colocar em risco um mundo que, assente no livre comércio global, estava pletórico de optimismo e de riqueza, a guerra – que havia de levar à destruição global – foi declarada em Agosto de 1914. Consultando os jornais da época nas semanas anteriores, não se pode concluir que esse seria o caminho esperado. No entanto aconteceu, com os resultados calamitosos que bem sabemos.

Para melhor suportar o paralelo histórico entre a História de Tucídides, a Primeira Grande Guerra e a situação actual, encontramos várias similitudes entre a Inglaterra e a Alemanha do princípio do século XX com os EUA e a China neste princípio do século XXI. Os dois países estão hoje profundamente interligados por uma multitude de laços económicos e financeiros como, aliás, estavam a Inglaterra e Alemanha. A desconfiança que a Inglaterra liberal tinha da Alemanha estatizante e autoritária aplica-se hoje também hoje às diferenças culturais entre os EUA e a China do Partido Comunista. Também a rapidez do crescimento económico na Alemanha e na China tem as suas parecenças. A China conseguiu, nestes últimos 30 anos, o estatuto de grande potência, anulando a humilhação que lhe tinha sido imposta no século XIX pelas potências ocidentais. Graças às orientações políticas de Deng Xiaoping, a China consegue rapidamente aproximar-se da riqueza dos EUA (ou mesmo ultrapassá-la se considerada em paridade do poder de compra), competindo em sofisticação tecnológica e mesmo em poderio militar. Nestes campos é certo que ainda existe uma grande diferença a favor dos EUA. Mas o tempo corre a favor da China que, tendo abandonado a postura humilde de Deng Xiaoping que aconselhava “esconde a tua força, espera pelo teu tempo e nunca tomes a liderança”, opta agora por uma diplomacia descomplexada e musculada, que a Austrália está a descobrir à sua própria custa.

Neste quadro de afirmação assertiva de poder por parte da China, o artigo da Foreign Affairs conclui por algo tão estranho neste momento, como era a perspectiva de guerra no início do século XX. A tese do artigo é que, ou os EUA se acomodam ao aumento do papel regional da China no Pacífico, nomeadamente na questão de Taiwan, ou a guerra será inevitável. Esta não é certamente uma perspectiva muito animadora.

E o que fizeram, entretanto, os EUA com esta evidência de uma China que reivindica a liderança regional sem perder de vista a global? A resposta destes últimos anos foi uma desconcertante e caótica guerra de taxas alfandegárias como se o que estivesse em causa se resolvesse colocando travões financeiros ao comércio bilateral (cujos custos, aliás, foram pagos essencialmente pelos consumidores americanos). Além disso, este primeiro round em nada alterou o desequilíbrio das trocas comerciais.

A fase inicial do conflito, que mais se assemelhou, por vezes, a simples cenas de taberna, vai agora ser substituída, espera-se, por uma negociação responsável e alargada. Mas com a opinião pública americana excitada pelas primeiras refregas e com a perspectiva de poderem vir a acontecer iniciativas belicosas por parte da China na orla marítima, vai ser preciso um Péricles muito convincente em Washington para impedir o início das hostilidades. Porque, accionada a armadilha e iniciadas as hostilidades, é bem difícil de imaginar como estas acabam.

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