Para a esquerda, a questão é de agronomia política

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Os líderes não mudam a história, quem muda a história, influencia a história, é a grande fila de índios, por isso, é preciso construir, revalorizar o Estado, construir força política e, como tal, empenhar a vida nesta causa.” José Mujica, ex-Presidente do Uruguai

Contra o nacionalismo, a internacional

Quando nos esquecemos do óbvio, temos sempre o ex-Presidente uruguaio José Mujica para nos fazer recordar: os processos históricos de mudança não são conseguidos por este ou aquele líder, mas pela força do colectivo. São as massas que ajudam a mudar o mundo e, sem elas, os líderes de esquerda bem podem clamar as suas vias para transformar o futuro que elas continuarão intransitáveis por falta de seguidores. “Não podemos, na esquerda, sonhar com mudar o capitalismo se não começarmos por mudar os valores que orientam a nossa conduta e a nossa cabeça, isto é muito mais profundo do que parece, como tal, significa compromisso de construção política porque os esforços são colectivos”, disse o ex-chefe de Estado, que recentemente abdicou do seu lugar no Senado do Uruguai e pôs um ponto final na carreira política por receio da covid-19. A mensagem foi enviada para assinalar os dois anos do arranque da chamada Quarta Transformação, levada a cabo pelo Presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador – vários antigos e actuais dirigentes da esquerda no mundo enviaram mensagens que bateram muito na tecla da necessidade de união, de pôr de lado as diferenças à esquerda e de conquistar o eleitorado para introduzir as mudanças necessárias para um mundo pós-liberal. Como afirmou o socialista José Luis Rodríguez Zapatero, antigo primeiro-ministro espanhol, perante o nacionalismo de direita, com os brotos de extrema-direita que se transformaram em culturas daninhas, “a esquerda deve reafirmar e recuperar a sua visão internacionalista, esses foram os melhores momentos da sua história, a sua capacidade de dar uma resposta global, coordenada”, acrescentou.

A cabeça política de Gleisi Hoffman

Lula foi o melhor Presidente da História do Brasil. A sua chegada ao poder e os seus dois mandatos na chefia do Estado representaram uma autêntica revolução num dos países mais desiguais e racistas do mundo. Mas o tempo de Lula passou e quanto mais tempo o PT continuar preso por essa âncora do passado, mais tempo levará a sua travessia do deserto, como demonstraram os resultados desastrosos das últimas eleições municipais. “A gente não pode ficar refém. Eu sou amigo-irmão do Lula, mas vou ficar refém dele a vida inteira?”, perguntava retoricamente o senador Jacques Wagner, ex-governador da Bahia, citado pelo UOL. A estratégia eleitoral do partido foi obra de Lula, foi ele quem defendeu que o PT deveria apresentar o maior número de candidatos possível em todo o país e não apoiar outras candidaturas de esquerda em sítios onde estas tinham mais hipóteses de vitória. A pior derrota eleitoral da história do PT terá de ser o ponto final nesse percurso glorioso que Lula ameaça tornar mais opaco com a sua insistência em não sair de cena. Para já, a movimentação é para afastar aquela que tem sido o braço de Lula dentro do partido, a senadora Gleisi Hoffman. Como escreve a colunista da UOL Thaís Oyama, “diante da pior surra eleitoral da sua história, o PT planeia oferecer a cabeça da sua presidente num ritual de sacrifício destinado a preservar, ao menos simbolicamente, a do artífice da derrota”. Mas não chegará como mensagem para o eleitorado que se juntou para eleger Bolsonaro em 2018 e que deu a vitória aos partidos do centrão agora nas municipais. Nem chegará para acalmar as correntes minoritárias dentro do PT. Será um gesto efémero num partido em plena combustão.

Minorias que parecem votar contra si

As eleições presidenciais dos Estados Unidos demonstram que esta coisa de agregar toda a gente em comunidades e retirar conclusões como se todas elas agissem da mesma forma, em grupo, é uma falácia que a realidade se encarrega de desmontar. Se não fosse assim, como é que um Presidente como Donald Trump, responsável por inúmeros comentários e gestos racistas, sexistas, islamofóbicos e xenófobos, conseguia ter 30% dos votos dos muçulmanos, 30% dos votos dos homens não brancos, de 32 a 35% dos hispânicos (que o ajudaram a ganhar a Florida), 52% dos ameríndios. Segundo Andrew Sullivan, quando Trump chegou ao poder em 2016, apenas 15% dos muçulmanos dos EUA se dizia apoiante do Partido Republicano, em 2020, essa percentagem subiu para 25%. Como se explica que 60% das mulheres brancas e 21% das mulheres negras tenha votado por um Presidente que não faz mais do que subestimar as mulheres – para usar uma terminologia suave? “A partir do momento em que vemos o mundo por um prisma identitário grosseiro e que reduzimos as pessoas a moléculas socialmente construídas de diversas hierarquias raciais, não podemos se não acabar com esse tipo de análises” incapazes de explicar a realidade, diz Sullivan. Um dos desafios que se impõem aos movimentos políticos de esquerda é o de procurar aliviar os grilhões identitários para conseguir responder aos movimentos aparentemente inexplicáveis de eleitores que passam da esquerda para a extrema-direita sem pestanejar e que, aparentemente, votam contra os seus próprios interesses. É como afirma José Mujica, ou se transformam os valores ou não se transforma nada.

Terreno comum

Na secção de cartas ao director do Los Angeles Times, um destes dias, Linnea Luker escrevia que “a esquerda e a direita existem agora nas suas câmaras de ressonância”, tornando muito mais difícil conseguir encontrar terrenos em comum para desenvolver possíveis consensos. “Sem concordar com os factos, não se podem alcançar discursos nem compromissos significativos”, acrescentava a leitora. Nestes tempos em que as máquinas nos aconselham o que ver, ler, ouvir e até o que comer por intermédio de algoritmos que nos apartam cada vez mais uns dos outros e nos ensimesmam em mundos de certezas absolutas e provas de todas as teorias retorcidas que surgem nas nossas cabeças, é difícil discutir o mundo e, principalmente, definir o destino do mundo se não concordamos sequer na forma que esse mundo tem. Se descartamos os factos que desmentem as nossas opiniões, se apelidamos de mentiroso qualquer argumento que põe em causa a nossa teoria, como pode a humanidade criar um discurso político? A carta da leitora vinha a propósito do diálogo entre a colunista do LA Times Robin Abcarian e o analista conservador Scott Jennings, “cuja incapacidade de encontrar algum terreno em comum”, se mostra “desconcertante” para outra leitora, Irina Dubovitsky. Com a humanidade condicionada no seu pensamento e presa a visões excludentes do mundo, o grande desafio da esquerda será mesmo o de descobrir um terreno para plantar a sua semente de futuro.

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