Uma cerca sanitária, seguida de testes em massa. “Rabo de Peixe é muito forte e vai conseguir ultrapassar isso”

Na vila açoriana de Rabo de Peixe, quase toda a população compreende a imposição de uma cerca sanitária, que irá vigorar de 3 a 8 de Dezembro. Com 66 infectados, é a freguesia com mais casos de covid-19 nos Açores.

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Jeremias Medeiros Rui Soares
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Leonor Rebelo Rui Soares
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Rabo de Peixe Rui Soares

A torre altiva da Igreja do Bom Jesus pauta o início de mais um dia na vila de Rabo de Peixe, em São Miguel. Tal como nas últimas semanas, o mar está bravo e o céu enegrecido. É um dia, aparentemente, igual a tantos outros, mas, na verdade, é um dia diferente de todos os outros: é a véspera da imposição de uma cerca sanitária que vai isolar a freguesia durante seis dias devido à covid-19.  

Telmo Moniz já se precaveu para o que aí vem. Com a carrinha branca estacionada ao largo do passeio, o vendedor ambulante de pescado revela ao PÚBLICO que tinha, minutos antes, tratado de arranjar o “papel para poder circular”. “Agora já vou poder passar a cerca, a gente tem que trabalhar, não pode parar”, começa por dizer, acrescentando que é preciso ter o “máximo cuidado” para evitar “mais casos positivos” na vila. Quinta-feira, o dia de trabalho vai começar às 5h e por essa altura já não se poderá entrar nem sair da freguesia com mais casos de covid-19 nos Açores. São 66 os infectados na vila, num arquipélago que regista 366 casos activos.

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Telmo Moniz é vendedor ambulante de pescado Rui Soares

O ofício do jovem de 34 anos enquadra-se nas excepções previstas. Das 00h de dia 3 até às 23h59 de dia 8 apenas serão permitidas as deslocações para a prestação de cuidados de saúde, para a assistência de idosos ou menores, de profissionais de saúde e forças de seguranças, de jornalistas em funções e para o abastecimento de bens essenciais. Mas para controlar o surto em Rabo de Peixe, não foi apenas anunciada a criação de uma cerca sanitária – a única da região. A partir de quinta-feira, haverá testes em massa: toda a população será alvo de testes rápidos, isso numa das mais populosas freguesias açorianas com 8.866 habitantes (censos de 2011).

“Sou 100% favor”, atira prontamente Telmo Moniz, referindo-se à testagem da população. Para ele, não há problema. “Gostava de ser testado, para saber se tenho ou não, também para salvaguardar os outros”, acrescenta. Explica que em casas de “famílias numerosas” com “dez, 12 pessoas é difícil controlar” a propagação da covid-19. Mas, apesar disso, faz questão de ressalvar: o cordão sanitário não é consequência da falta de civismo dos rabo-peixenses. “Algumas pessoas podem não respeitar as regras, mas isso acontece em todo o lado, não é apenas em Rabo de Peixe, que só tem fama. Rabo de Peixe é muito forte e vai conseguir ultrapassar isso”.

Na vila, pelas ruas estreitas de casas coloridas que desembocam no mar, quase toda a gente circula com máscara. Até a estátua de um pescador, no centro da freguesia, símbolo de uma terra que faz do mar vida, está de máscara. “Quem será que colocou aquela máscara no homem?”, questiona, a rir, Paulo Alexandre, ele próprio pescador. Um pescador que não vai poder trabalhar durante a próxima semana devido ao cordão sanitário.

Atendo às características de uma vila piscatória, entre as excepções, o governo açoriano autorizou a ida de pescadores para o mar, desde que entrem, saiam e descarreguem no porto de Rabo de Peixe. “Não posso ir para o mar porque o meu barco está na Vila Franca”, explica Paulo Alexandre, referindo que, como ele, existem muitos pescadores rabo-peixenses que utilizam o porto de Vila Franca do Campo, um concelho a 25 quilómetros da freguesia. Por isso, não tem dúvidas: o “impacto” da cerca vai ser “terrível” para as pessoas “que vivem com o pouco que ganham”. “As crianças vão passar um Natal com dificuldades”.

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“Não posso ir para o mar porque o meu barco está na Vila Franca”, diz Paulo Alexandre Rui Soares
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A estátua no centro da freguesia Rui Soares

Ainda assim, o homem de 42 anos concorda com a medida e apresenta um termo de comparação. Esteve em Lisboa a semana passada e constatou que na capital as “medidas são muito mais rigorosas” do que na sua terra. Só não concorda é com a testagem em massa da população – isso supondo que será feita casa a casa e não por drive in. “Não me sinto confortável da maneira que vai ser, tenho medo. Os testes deviam ser carro a carro, ir casa a casa pode ser um foco de contágio.”

“Saúde em primeiro lugar”

A imposição de cercas sanitárias na freguesia veio acompanhada pelo encerramento de escolas e pela proibição de circulação na via pública, à excepção dos passeios higiénicos. Já os cafés e restaurantes têm permissão para abrir até às 20h, mediante um terço da lotação. Para Edmundo Travassos, proprietário do snack-bar Edmundo, as medidas deviam ser ainda mais drásticas: “deviam era fechar tudo, pelo menos nesses seis dias, ninguém morre por seis dias”, defende.

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Edmundo Travassos vai continuar com o estabelecimento aberto Rui Soares

Edmundo vai continuar com o estaminé aberto e não espera ter “nenhuma dificuldade” no abastecimento de produtos. Diz que por ali “tem aparecido pouca gente”, porque há “muito medo”, mas critica os estabelecimentos que durante a noite “estão cheios de gente”: “são uma excepção, mas existem”. De forma resignada, mas sem lamentos, reconhece os impactos que o isolamento da freguesia vai ter no negócio. “Vai ter impacto, claro que vai ter, mas temos de nos amanhar. Queremos é a saúde das pessoas em primeiro lugar.”

À porta do café, encostado à parede e de máscara a tapar o pescoço, está Jeremias Medeiros, a queixar-se das novas medidas para a freguesia. “Eu não concordo com essa cerca, devíamos era ver quem tem e quem não tem. Por um não têm de pagar todos”, diz já com a máscara devidamente colocada. Assume-se “preocupado” pela possibilidade de não poder ver o filho de cinco anos devido ao isolamento decretado à freguesia, pois está separado da mulher com quem o filho vive na Candelária, em Ponta Delgada. “Aquela criança está habituada a estar todos os fins-de-semana comigo.” Ainda esta quarta-feira, diz, vai à junta para se informar se o seu caso está dentro das excepções, mas, antes disso, quer ser testado à covid-19. “Quero garantir que estou limpo antes de ir ter com o meu filho”.

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"A cerca é uma boa medida", diz António Melo Rui Soares
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Jeremias Medeiros “mal tem saído de casa” Rui Soares

Jeremias “mal tem saído de casa” – está reformado – e esta quarta-feira apenas foi à rua comprar umas couves e hortaliças no minimercado A. Melo, que se vai se manter aberto durante os próximos dias. “A cerca é uma boa medida”, diz o proprietário, António Melo, que não tem sentido diferenças na afluência ao estabelecimento nos últimos dias. O empresário não prevê dificuldades no abastecimento do minimercado, mas confessa não saber que consequências poderá ter o confinamento nas contas do negócio. “Temos de aguardar, não sei que impacto poderá ter. Se isso for andando como tem estado, conseguimos aguentar”, diz, salientando, orgulhoso, que não dispensou ninguém desde o início da pandemia.

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Leonor Rebelo já fez três testes à covid-19 Rui Soares

Cá fora, perto do minimercado, Leonor Rebelo desinfecta as mãos antes de utilizar um multibanco. “A junta pôs o desinfectante aqui, é para usar”, afirma, sem rodeios. A mulher de 55 anos concorda com a cerca sanitária e com os testes à população e, especifica, já teve de fazer três testes à covid-19: dois quando regressou dos Estados Unidos (ao primeiro e sexto dia), outro por ter estado próxima de um caso positivo. “Dói bastante, mas tem de ser” a zaragatoa, entenda-se. Já quanto à cerca sanitária, para ela não implicará grandes alterações ao quotidiano. Em Rabo de Peixe, há de tudo. “Eu sou doméstica, estou quase sempre em casa e quando saio é aqui perto. A gente aqui tem tudo o que precisa.”

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