Térmita: comer livros e brindar ao Porto

Os donos do Candelabro abriram na porta contígua — que durante muito tempo foi um armazém de madeiras — uma livraria onde se misturam novos e usados, vinho e memórias de outra vida da Baixa da cidade.

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A Térmita podia contar a história do coração do Porto Paulo Pimenta
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"As pessoas da Cultura estão a passar por graves dificuldades" Paulo Pimenta

A porta assinala apenas um negócio vizinho de reparações, material eléctrico e resistências (blindadas, tubulares e refractárias). Está para breve a sinalética da Térmita, um espaço que surgiu no Porto em contracorrente — porque abriu em vez de fechar, porque é uma livraria e não um AL, porque nos serve livros em vez da melhor sande, do melhor pastel, do melhor isto ou aquilo do Porto, porque quer ficar mais ligado “às pessoas de cá” e não tanto ao “tsunami de turistas” que noutra vida “invadiu os espaços e ocupou tudo”.

Na porta contígua ao Candelabro, no número 5 do Largo de Mompilher, a Térmita podia contar a história do coração de uma cidade que antes da pandemia já enfrentara outros surtos difíceis de entender e de controlar, espaços e turistas voláteis que transformaram, sugaram e deixaram o Porto irreconhecível para estupefacção de quem ficou e pôde assistir. “Abrimos em contracorrente”, afirmam Hugo Brito e Miguel Seabra, primos “mas como irmãos”, donos desta Térmita com ligações umbilicais ao Candelabro, bar que inauguraram em 2009 — o Candelabro original era um alfarrabista de 1952 que ainda teve uma segunda vida nas mãos de Luís Moutinho antes de o negócio se mudar para o número 471 da Rua de Cedofeita. “Ficámos com o Candelabro com a condição de não abrirmos uma livraria. A livraria está aqui agora”, dizem. Já ali vendiam alguns livros (com o apoio da livraria Fernando Santos, alfarrabista de Braga), que se misturavam com os copos e as garrafas de vinho e com alguns objectos vintage. “As pessoas pensavam que era decoração.” E esse interesse “nunca esmoreceu”.

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Abriu um espaço no Porto — em vez de fechar Paulo Pimenta

Neste mesmo sítio existia um armazém de madeiras que agora trabalha na Rua do Paraíso. Estava precisamente no topo da Rua da Picaria, onde até há uns anos, porta sim, porta não, conviviam carpintarias, marcenarias e lojas de móveis. “Tornava-se impossível parar as carrinhas e ter uma actividade industrial numa rua que está dominada pela hotelaria”, explica Hugo Brito. Os amigos e sócios negociaram uma renda “a longuíssimo prazo” e avançaram, aproveitando também o fim da Champanheria naquele largo para ampliar a colónia da sua Térmita. “Isto estava em muito mau estado”, recordam.

Nos fundos há um espaço "multifuncional e multicultural" Paulo Pimenta
A recuperação ficou a cargo de Sofia Pera Fernandes, do gabinete Still Urban Design Paulo Pimenta
Onde havia térmitas agora há livros Paulo Pimenta
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Nos fundos há um espaço "multifuncional e multicultural" Paulo Pimenta

No armazém, no chão de soalho a todo o comprimento e nos lambris altos viviam “muitos bichinhos”, numerosas obreiras e soldados xilófagos. O seu prato principal é a madeira. “Atacam tudo. E gostam de leitura, sem dúvida. Para eles os livros são bombons”, brinca Hugo, outro devorador de livros “desde sempre”, quase um “atleta de alta competição” de leitura — acorda todos os dias às cinco da manhã para ler ("leio tudo e muita coisa ao mesmo tempo porque os livros não têm ciúmes uns dos outros") e com a mesma vontade com que se levanta para nadar longas distâncias no mar, correr, pedalar e escalar montanhas. “A essa hora tenho poucas distracções. Sinto-me em paz. São coisas que me dão muito prazer”. A livraria simplesmente adoptou um nome que já estava no “subconsciente”. “As térmitas fazem canais e esse rizoma é interessante até de uma forma filosófica”, aponta Hugo Brito, formação em Arqueologia.

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As térmitas "atacam tudo — e gostam de leitura, sem dúvida", brinca Hugo Brito Paulo Pimenta

A descoberto, sem bicho, ficaram algumas ligações arquitectónicas, quase endémicas, ao passado da cidade (um trabalho da arquitecta Sofia Pera Fernandes, do gabinete Still Urban Design), os azulejos das paredes e o mosaico hidráulico que pisamos, uma garrafeira cheia de referências e uma pequena cozinha de apoio ao Candelabro, o estuque nos tectos, o lambril de 1910 e as estantes modernas em varão roscado com livros novos e usados “sem distinção” ("São todos para ler. É como as pessoas: não têm que ser novas ou velhas, são pessoas. A partir do momento em que pegas neles e lês, já são usados"), “sensibilidade e alma”, remata Miguel Seabra, artista plástico (formado em Escultura na Escola de Belas Artes), director artístico do “multifuncional e multicultural” armazém dos fundos — neste momento a mostrar o trabalho com a assinatura de Henrikas Riskus aka H2 onde se aproxima a estética e o caos.

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A estética e o caos da arte de Henrikas Riskus aka H2 Paulo Pimenta

Não abriram este espaço mais cedo porque, a determinado momento, na Baixa as rendas passaram a ser “inacreditavelmente altas”, “incomportáveis” para uma livraria. Abriram agora porque o armazém de madeiras já não cabia na Baixa. Não abriram um restaurante. Miguel e Hugo têm a noção de que precisavam de um espaço “que receba as pessoas de cá”, muitas delas habituadas a viver os espaços mais do que a tratá-los como uma chiclete. Montaram uma livraria que tanto avalia e compra colecções privadas como lança edições novas — como o Kiosk Zine, que nasceu para privilegiar o prazer de manusear a imagem impressa, e Pimenta na Língua, edição de 105 exemplares escrito pela Madame de Merteuill, pseudónimo de Renata Portas, e ilustrado pela Susana Bravo durante a pandemia, um livro de contos táctil e libertino que ironicamente surge num momento em que o contacto físico é quase proibido. “Queremos cultivar a permanência das pessoas e que os espaços não sejam tão voláteis.”

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O vinho em um lugar de destaque ao lado dos livros Paulo Pimenta

Recém-nascido, o espaço Térmita sente na pele a força das restrições que outros resistentes sentem. “Maus Hábitos, Ferro, Mira, Sismógrafo, Miguel Bombarda... outros estão adormecidos ou moribundos”, apontam os donos da livraria, obrigada a cumprir “este horário” e “este número de pessoas [cinco na livraria]”. “As pessoas da cultura estão a passar por graves dificuldades, não têm apoios, não têm forma de se exprimir devido às restrições de horários e de pessoas. Estão confinadas a um reduto mesmo exíguo.” O pulso sente-se com dificuldades. “Tens que o sentir com muita atenção ou não o sentes sequer. Sentes uma linha lisinha.”

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Os livros "são todos para ler". "É como as pessoas: não têm que ser novas ou velhas, são pessoas" Paulo Pimenta
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