Restauração da independência dos dependentes

Tudo isto para dizer que, por mais infantil que possa parecer, o Dia da Restauração da Independência lembra-me sempre as pessoas que algum dia estiveram dependentes de alguma coisa ou de outrem.

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O título é parvo, confirmo. Mas servem as parangonas deste texto para dizer que quase todos os dependentes já foram independentes um dia, ou sonham vir a sê-lo. Excluindo os bebés, os portadores de algum tipo de deficiência incapacitante, ou qualquer outro caso de excepção, todos acabam mais tarde ou mais cedo por ser independentes dos pais ou de outro cuidador que nos tenha aturado durante o crescimento.

Tornar-se independente significa muitas vezes entrar na vida de adulto com uma mão à frente e outra atrás (que é, como quem diz, protegendo a genitália, não vá dar-se, como no futebol, um livre directo, não na direcção da baliza, que é como quem diz dos nossos objectivos, mas no sentido da nossa desgraça). Frequentemente, quando um adulto se torna independente dos pais, cai logo noutro esquema de dependência, normalmente no amoroso. Os dependentes do amor ficam completamente agarrados à pessoa amada, a quem alguns chamam de mãezinha ou paizinho. (Não vou comentar sequer esta situação, faz de conta que a minha religião não permite.)

Diz-se, em linguagem popular, que é uma transferência freudiana básica. Livram-se dos pais biológicos e arranjam um marido que é um novo paizinho: controla o tamanho das saias, as saídas com as amigas, etc. E também há o caso contrário, quando os homens arranjam uma mãezinha, que tem sempre o jantar pronto e mimos no frigorífico, e que os leva ao doutor quando têm uma constipação ou põe-lhes um penso no “dói-dói”. (Faleço um pouco com esta descrição, confirma-se.) O problema, o verdadeiro busílis das dependências, é o medo. Quando se depende de alguma coisa, tem-se medo não só de a perder, mas de se ser o motivo por a ter perdido. Tenta-se fazer tudo bem para não defraudar as expectativas de quem supostamente nos ama ou cuida de nós.

Há uns anos, uma amiga próxima confessou-me, enquanto comia um prato de canja à minha frente, que estava com muito medo. O medo dela relacionava-se com a iminência de perder a pessoa com quem vivia. E que se perdesse a pessoa que amava preferia morrer. Ainda esbocei um sorriso porque pensei que estava a exagerar, que era mais umas das suas afirmações melodramáticas que tanto gostava de fazer. Não estava. Ficou seríssima a olhar para mim, durante aquilo que me pareceu uma eternidade, e depois levou mais uma colherada de canja à boca, batendo ao de leve com a colher nos dentes da frente. Estava chocada com aquilo que ouvi. É que não tinha a menor empatia por uma situação daquelas. Deixar de viver porque alguém deixou de gostar de nós. Ou seja, a vida daquela amiga não valia nada sozinha, estava completamente dependente da vida da outra pessoa.

Todavia, o auspício do desgosto da minha amiga (não, não estou a usar o clássico “a minha amiga” para falar sobre a minha vida) estava correcto. Acabou por ser deixada pela pessoa que amava. Ficou aterrorizada, ainda mais do que antes, porque o pesadelo concretizara-se. Adoeceu, mas felizmente teve acompanhamento e nunca chegou a pôr em risco a sua própria vida. Está saudável agora e voltou a ser independente, restaurou a sua independência. Nota-se que está a viver sem medo de estar sozinha. Livrou-se daquele medo que é mesmo escuro e que assusta até os animais que nele vivem. Percebeu que tinha estado doente, isso foi o mais importante. 

Tudo isto para dizer que, por mais infantil que possa parecer, o Dia da Restauração da Independência lembra-me sempre as pessoas que algum dia estiveram dependentes de alguma coisa ou de outrem. Não, não vou falar sobre esse evento histórico importantíssimo para Portugal. É por isso que é feriado e tudo, vocês sabem. Se não sabem, vão ao Google, pesquisem, ou perguntem aos vossos pais. Não tem mal, às vezes podemos ser dependentes. 

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