Não quero fazer 75 anos

O apelar a critérios etários, para definir o acesso a vacinas que nos podem salvar a vida, é ilícito seja qual for o grupo etário considerado.

Não quero fazer 75 anos no dia 1 de janeiro, nem tão pouco no dia 2. Na verdade, no dia 3 também me calha bastante mal… Dia 4 fará sol, dia 5 é o meu dia da sorte… Não quero fazer 75 anos depois de ter conhecido o documento provisório da task force encarregada pela DGS de definir a estratégia de vacinação contra a covid-19 em Portugal, em 2021.

Em boa hora António Costa rejeitou a solução proposta de considerar não prioritária a vacinação dos idosos com mais de 75 anos, salientando que “as vidas não têm prazo de validade”. Esta não pode, no entanto, ser direta ou indiretamente retomada em ulteriores documentos da DGS, por ser expressão de discriminação injusta em razão da idade, de idadismo.

A Lei (v.g. a Carta dos Direitos Fundamentais da UE) proíbe que sejamos impedidos de aceder a bens e serviços apenas porque o tempo que somos, passa. Não podemos, à semelhança de Dorian Gray em Oscar Wilde, parar todos os relógios e fixarmo-nos numa juventude dourada, a que a doença, a fealdade e a morte sejam alheias. Esta nova e grave forma de discriminação faz-se sentir sobretudo nas 3.ª e 4.ª idades e está associada a estereótipos presentes em muitas sociedades sobre os mais velhos: são doentes, não contribuem para a produção de riqueza na sociedade, as suas vidas já não têm qualidade e tornam-se num fardo para si mesmos. Ora, a idade biológica de cada um nem sempre coincide com a sua idade cronológica e, sobretudo, a inteligência, a bondade e a alegria não têm idade. A dignidade que nos é juridicamente reconhecida é invariável enquanto vivermos, pelo menos no retângulo do Planeta Terra que é Portugal.

O apelar a critérios etários, para definir o acesso a vacinas que nos podem salvar a vida, é ilícito seja qual for o grupo etário considerado. Se o for para excluir os mais idosos expressará implicitamente a ideia – contraditada por António Costa – de que a vida humana a partir de um certo limite já não valeria a pena ser vivida. De que existiriam vidas humanas (cidadãs e cidadãos) “de primeira” e “de segunda”.

Estes limites não podem, de modo algum, ser retomados nos critérios que venham a ser definidos, em matéria de prioridades na vacinação contra a covid-19, pela DGS. Os motivos invocados para o efeito também eram questionáveis: importa haver “evidência suficiente sobre a eficácia da vacina neste grupo etário” ou evidência sobre a eficácia da vacina na população em geral, para que se possa alcançar a pretendida “imunidade de grupo”? Qual a importância de não terem sido realizados ensaios clínicos das novas vacinas neste especifico grupo etário se, há décadas, mulheres e crianças tomam medicamentos que foram, sobretudo, testados em homens adultos, com uma estrutura biológica distinta?

Convidam-nos a aceitar acriticamente decisões governamentais, por vezes criativas: confinam-nos a horas em que estamos a dormir, obrigam-nos a trabalhar presencialmente em atividades que poderiam, sem significativa perda de qualidade (por ex. lecionar aulas teóricas em Universidades) ser realizadas à distância, a efetuar genuínos “encontros propícios à covid-19” nos supermercados aos sábados de manhã… fecham-nos em casa o resto do fim-de-semana, ainda que a exposição solar fortaleça o sistema imunitário… Terá sido a bola de cristal a anunciar não haver risco acrescido de contaminação no Grande Prémio de F1 em Portimão? Trarão os animais do Presépio risco maior de contaminação, uma vez que se trata de uma zoonose?

Confiamos na boa-fé e excelente boa vontade dos nossos governantes numa situação extremamente difícil como a que vivemos. Mas todo o alerta é pouco em relação a decisões que neste ou em contexto similar possam vir a ser tomadas, ofensivas do mais importante princípio estruturante do Estado de Direito Português: o da eminente dignidade da pessoa humana.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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