Ensaio sobre a bondade

Quando quase metade da América validou Trump e a sua decadência moral, mais gente ainda se mobilizou para dar voz à decência e à compaixão de viver o outro. Na hora da decisão, a bondade mostrou as suas cores.

A espiral de horrores que este ano tem assolado a vida de praticamente toda a população mundial encontrou um momento de reequilíbrio histórico com a derrota de Trump. A eleição de Biden é a golfada de ar depois de anos de um mergulho profundo nas águas da mentira, da manipulação e da maldade, constituindo uma das mais valiosas conquistas do combate democrático, o resgate da bondade. Agora, é o momento de Portugal enfrentar a sua batalha.

Tudo o que poderei aqui escrever sobre Trump terá já sido redigido, ou imaginado, por pelo menos uma das almas que habitam a Terra, tal é o efeito expansivo do seu nefasto legado. Portanto, privado de qualquer originalidade, resta-me a breve reafirmação da obviedade. Trump é, acima de sua nulidade intelectual ou abjecção verbal, a verdadeira parábola do homem mau. Uma criatura cruel que age por si, para si, na destruição literal e metafórica da existência que o rodeia, no propósito único da apoteose do seu ego. Para Trump, o outro é menor. Ora, na política, na que ainda vale a pena acreditar, só importa o outro. Servir o outro. Um político serve, não se serve. E um homem que, na vulnerabilidade dos outros, encontra o seu êxtase triunfal é um homem que perdeu a humanidade.

Em toda a sua normalidade, Biden é a antítese de tudo isto e, portanto, o resgate essencial. Um homem vivido a quem a idade já dobra e a quem a vida cruelmente foi marcando, não pautado por brilhantismos oratórios, projecções internacionais de força ou por um grande calibre intelectual. Biden é, sem isso, mas acima de tudo isso, um homem bom. Nesta era individualista, em que a beleza, o carisma ou a esperteza vivem no Olimpo das virtudes, ter empatia quase parece coisa menor, qual predicado eclipsado e sem vigor. Acontece que a bondade é o pilar civilizacional, a cola social que nos faz acreditar que isto vale a pena. Desde ajudarmos a idosa a passar a estrada sem uma selfie que nos valide a compaixão, até ao reequilíbrio social de colectivamente apoiarmos uma escola e saúde públicas que até os mais frágeis de nós possam usufruir, ser boa pessoa é lembrar que o outro também conta.

Biden não habita o desejo narcísico de viver numa redoma de espelhos de ouro. É o homem preocupado que entrega horas a ouvir uma mãe que chora a morte do seu filho, o homem humilde que liga ao hospital para saber da recuperação de um cidadão anónimo, o homem resiliente que perdeu dois filhos e que nunca permitiu que a mágoa devastasse o seu sentido de serviço e de respeito pelo adversário. Ele olha, sorri e escuta. É o velho gentil que é como nós, um homem normal. Neste combate, isso chegou. Quando quase metade da América validou Trump e a sua decadência moral, mais gente ainda se mobilizou para dar voz à decência e à compaixão de viver o outro. Na hora da decisão, a bondade mostrou as suas cores.

As terras lusas vivem também os seus combates, não tão épicos, ainda não tão polarizados, e certamente não tão internacionalmente consequentes, mas com todo o direito ao seu vigarista de serviço. A América foi, nestes últimos quatro anos, a nossa peça de teatro, em que, com a devida distância, pudemos sentar-nos na assistência e, se assim tivermos tido a sabedoria, aprender com os desfechos do seu enredo. Temos, assim, o dever moral de não nos deixarmos seduzir por um manipulador cuja coluna vertebral moral faz inveja às esguias serpentes que dançam pelos chãos das florestas. O nosso querido André hoje quer o fim da saúde pública, amanhã o seu reforço, de manhã o Estado deve rejeitar o ensino público, de tarde dar-lhe o seu abraço, de dia deixa-se fotografar na igreja ajoelhado, qual devoto cristão, de noite reza a Deus para que os negros voltem lá para a sua terra. Tanta candura, Cristo ficaria orgulhoso. Enfim, quem não tem substância vive de escândalos. Eu gostava que o nosso país tivesse direito a um aldrabão com alguma qualidade, mas só nos calham estes pelintras.

Frequentemente leio que não devemos subestimar o cavalheiro André, que a sua inteligência é suficiente para ser perigosa. Ainda que conceda e reforce o erro de uma arrogante subestimação, penso que o diagnóstico tem um descuido crucial. Não confundamos esperteza, ardileza e habilidade verbal com inteligência. O André fala rápido, interrompe, pulula de assunto em assunto, oferece soluções toscas para problemas complexos e tem língua de prata para encantar a desilusão, mas isso não tem nada que ver com inteligência. Aliás, não mais faz ele que insultar a inteligência de quem o ouve, apostando na nossa ingenuidade para acreditar na metamorfose das suas palavras e intenções. Também leio que se formou com 19 de média universitária e que concluiu um doutoramento na Universidade de York, deixando no ar uma dissipada sugestão acerca do seu calibre intelectual. A verdadeira inteligência é, contudo, uma virtude decisivamente mais complexa, com uma espessura que não se mede imponderadamente por conquistas académicas, por estudar no estrangeiro ou pela quantidade de palavras que se produzem por minuto.

A inteligência é um animal sereno. Uma pessoa inteligente sabe que a cor da pele nada diz sobre o carácter de um indivíduo, sabe que o valor da verdade é essencial para a construção do conhecimento e para a conservação da harmonia social, sabe que a prosperidade de uma sociedade se conquista com união e não com raiva e ódio. Compreende plenamente que o mundo é maior que o próprio. Um espertinho pode ter uma ideia de tudo isto, porém uma pessoa inteligente compreende o seu valor e age em conformidade. O André, além da sua pobreza intelectual, é um fracasso de cidadão. Uma pessoa que desperta o pior dos outros, acicatando e manipulando descontentamentos e desilusões legítimas para alimentar um raquítico projecto pessoal de poder, é uma má pessoa. E o André é um mau homem.

Quem vive imerso em si não se critica, não se envergonha e, portanto, não se corrige, o que faz com que este texto não seja para o André. Este texto é para todas as pessoas que estão frustradas, que têm uma zanga dormente que o André veio acordar. Vocês têm razão. Há razões para estar cansado das tantas e quantas dificuldades que a vida nos desenha, para ser intolerante com as elites ambiciosas que corrompem, roubam e se regozijam com a nossa passividade. Há razões para sermos exigentes com a nossa governação. Mas não há razões para sermos más pessoas e cedermos ao pior de nós, para nos transbordarmos de raiva e ódio e acharmos, cegos que estamos de frustração, que a culpa mora na pessoa ao lado, no negro, ou no cigano. Isso é fácil, demasiado fácil. E nós, todos nós, somos muito melhores que isso. Somos muito melhores que o pouco que ele assume de nós.

Para lá do horizonte dos nossos mares, a América salvou-se do pior de si e escolheu a bondade acima de todos os outros poderes. Por cá, podemos e devemos ter visões diferentes sobre como construir uma sociedade, mas sermos boa gente deve ser o princípio e o fim da viagem que fazemos juntos.

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