“Seremos uma sociedade imperfeita enquanto uma só pessoa viver na rua”

O Parlamento Europeu aprovou, na terça-feira passada, uma resolução para acabar com o fenómeno dos sem-abrigo até 2030. Na União Europeia, há cerca de 700 mil pessoas na rua, após um crescimento de 70% na última década.

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Sem-abrigo a dormir numa rua da cidade do Porto Paulo Pimenta

Confrontada com o mais recente relatório que dá conta de 700 mil pessoas a viver nas ruas por toda a União Europeia, após um crescimento de 70% na última década, a Comissão das Petições do Parlamento Europeu elaborou uma resolução que visa extinguir o fenómeno até 2030. E o Parlamento (PE) aprovou-a, na terça-feira, com 647 votos a favor, 13 contra e 32 abstenções.

“Dou importância a esta resolução; ela vem pôr o dedo nesta chaga social, dizendo que não podemos conviver com isto como se fosse normal”, aponta ao PÚBLICO Manuel Pizarro, da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas. O eurodeputado, um dos quatro portugueses na Comissão do Emprego e Assuntos Sociais, acrescenta que o problema é “humanamente inaceitável”, às vezes ensombrado pela “tentação de tornar os sem-abrigo invisíveis”. “Seremos uma sociedade imperfeita enquanto uma só pessoa viver na rua”, reitera.

Uma das medidas inscrita na resolução é a “intervenção rápida” junto dos sem-abrigo mais recentes; o eurodeputado, eleito pelo PS, considera a medida “urgente”, por “estar demonstrado que uma pessoa ganha enorme tolerância” a viver na rua “passados alguns dias” de lá cair.

O documento do PE também menciona o acesso constante a centros de apoio temporário, e o apoio financeiro a organizações não-governamentais e a autoridades locais para trabalharem com os sem-abrigo. “Muitas vezes, as ONG estão em melhores condições para abordar estas pessoas e contactá-las na rua do que o Estado”, diz Manuel Pizarro.

O eurodeputado lamenta ainda o pouco “conhecimento científico” relativo ao fenómeno e defende mais investigação. Está, porém, convencido de que é impossível resolver o problema sem garantir habitação aos que vivem na rua.

A resolução defende o Housing First (Casas Primeiro, em português), princípio que defende a oferta de casa às pessoas sem-abrigo, para depois lhes abrir as portas à inclusão social. O socialista concorda com o programa já em curso em alguns estados-membros, incluindo Portugal, com a experiência de Lisboa. “Sem casa ninguém pode construir um projecto de vida sustentável”, salienta.

Habitação pública

O Housing First é “essencial para resolver o problema”, desde que “assente no princípio básico do direito à habitação”, considera Sandra Pereira, vice-presidente da Comissão do Emprego e Assuntos Sociais. Para a eurodeputada eleita pela CDU, o aumento das pessoas sem-abrigo é “sintomático da crise do neoliberalismo”, a ideologia responsável pela subida dos últimos anos nos preços das casas, face à “turistificação dos principais centros urbanos” – no caso português, classifica de “desastrosa” a Lei do Arrendamento de 2012 (“Lei Cristas”​).

A resolução de um problema que pode ser agravado pela pandemia exige, para Sandra Pereira, uma política global, que “regule o mercado habitacional e invista em habitação social e pública”, e uma política específica, que garanta aos sem-abrigo “rendimentos dignos, com apoio psicológico e de saúde, com formação profissional e inserção no mercado de trabalho”.

Também o eurodeputado do Grupo Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica (GUE/NGL) nessa comissão, José Gusmão, elogia a resolução por assumir a “habitação como direito na base de outros direitos”, por ser favorável ao Housing First e por condenar a criminalização dos sem-abrigo.

A moção, contudo, não identifica as “raízes da degradação da situação dos sem-abrigo”; para o representante do BE, as causas são a liberalização do mercado imobiliário e a ausência de “parque público habitacional significativo”. Em Portugal, diz mesmo que “não há Estado na habitação” – um documento da UE de 2019 mostra que a habitação pública corresponde a 2% do total, com os Países Baixos a atingirem 30% e a Áustria 24%, por exemplo. 

José Gusmão receia ainda a monitorização da Comissão Europeia proposta pela resolução, por considerar que a entidade foi causa do problema, com as medidas de austeridade impostas a meio da década.

Extensão da pobreza

A comissão integra ainda José Manuel Fernandes, eurodeputado do Partido Popular Europeu que olha o fenómeno dos sem-abrigo como uma das “formas mais graves de pobreza” na UE. “Não se pode olhar de forma isolada para esta questão. A responsabilidade cabe a cada estado-membro, mas isso não pode servir de desculpa para a União nada fazer”, diz ao PÚBLICO, referindo-se à necessidade de uniformizar a definição de sem-abrigo no espaço europeu, para se tomarem “medidas concertadas”.

O representante do PSD critica a falta de estratégia europeia para o combate à pobreza e crê que a resposta ao problema dos sem-abrigo deve enfatizar a prevenção, o reconhecimento das causas que levaram as pessoas para a rua e o incentivo a uma “economia competitiva e produtiva”, com “aposta nas pequenas e médias empresas e nas competências das pessoas”.

José Manuel Fernandes realça que a oferta de habitação pode ser insuficiente. “Nuns casos resolve, noutros não, porque há gente sem autonomia individual para preparar as refeições ou cuidar da higiene pessoal”, diz. O eurodeputado frisa, aliás, que é “inaceitável” esta situação de “pobreza radical” existir numa das “maiores economias do mundo”, com “estados sociais fortes”.

Portugal: um fim em 2023?

No caso português, o prazo para acabar com o fenómeno é 2023, embora o Presidente da República já tenha reconhecido ser difícil concretizar o objectivo. Mesmo reconhecendo as dificuldades de integrar todos as pessoas sem-abrigo, muitas delas desprovidas dos “mais básicos direitos de cidadania”, como o cartão de cidadão, e a dificuldade no acesso à habitação, Manuel Pizarro crê que a meta pode ser atingida, depositando as esperanças no “tecido social forte, activo e generoso” do país.

O eurodeputado do PS elogia o trabalho desenvolvido em Lisboa e no Porto, as cidades mais afectadas pelo problema, quer na oferta de casas, quer nos centros de acolhimento, e assume um desejo para 2024. “Era muito própria a comemoração do 50º aniversário do 25 de Abril com este objectivo alcançado. Seria um motivo de orgulho nacional”, confessa.

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