SNS – A pandemia fez rebentar o dique

Parece hoje consensual que a participação de todos é necessária até que as águas revoltas estejam controladas.

Na primeira investida infeciosa ainda foi possível resolver o problema sanitário dentro do Serviço Nacional de Saúde (SNS), na segunda era impossível. À pandemia das listas de espera para consultas e cirurgias hospitalares, juntou-se a pandemia covid. O “dique”, já sob uma enorme tensão, rebentou pelo elo mais fraco: o setor hospitalar. O superior interesse da saúde pública exigiu um maior envolvimento dos setores privado e social no tratamento de doentes covid e não covid. Parece hoje consensual que a participação de todos é necessária até que as águas revoltas estejam controladas.

Apesar de dificuldades acrescidas face à avalanche de doentes, o sector hospitalar público tem mostrado resiliência e capacidade de resposta, saindo da sua zona de conforto. Exemplo disso é a decisão de algumas administrações (Hospital de Matosinhos, Garcia de Orta) contratarem blocos operatórios de instituições privadas para manter as cirurgias não covid-19 que arriscavam ficar suspensas. Nestes casos, equipas profissionais deslocam-se para realizar as intervenções cirúrgicas necessárias. Podendo este parecer um pequeno passo na resolução das malfadadas listas de espera, é, pela disponibilidade mostrada pelos profissionais, um passo de gigante na forma de trabalho do hospital público.

Estou certo que, passada a tormenta, muitos profissionais continuarão disponíveis para se deslocarem a outras unidades do SNS mediante negociação de contrapartidas, incluindo um seguro de risco. Quebrem-se as amarras sem sentido – como podemos consentir que hospitais do SNS, alguns na periferia dos três principias centros urbanos, vão permanecer carenciados em especialidades médico-cirúrgicas?

Sairemos da situação atual mais pobres e com mais encargos financeiros, pelo menos o da profilaxia infeciosa no qual se inclui a almejada vacina. Tenhamos pois a noção que a ocorrência desta epidemia não veio resolver nenhum problema de Saúde, veio sim acrescentar mais um, reforçando a necessidade de repensar o modelo global de Saúde Pública e de organização dos serviços, nos quais se incluem os hospitais do SNS. Como vai ser reparado o “dique” vai definir o futuro do setor hospitalar do SNS.

Pertenço a uma geração profissional moldada pelo cadinho do Serviço Médico à Periferia, um dos esteios do SNS. À data da revolução de Abril, tínhamos escassez de médicos e foi possível minimizar carências pela disponibilidade dos mais novos se deslocarem para a periferia. Temos agora um número de profissionais suficientes, somos o quinto país da OCDE em número de médicos, o problema atual não é pois quantitativo mas qualitativo. Os tempos de hoje são diferentes exigindo outras soluções. Tenhamos ideias, haja a ousadia de ousar.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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