O som das caixas e dos bombos alumia uma noite de Pinheiro diferente

Mesmo sem se realizar, o cortejo que abre as seculares festas dos estudantes de Guimarães a 29 de Novembro não vai passar em branco. A cidade vai sair às varandas e às janelas com bombos e caixas para avivar a noite de domingo.

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Nos últimos 13 anos, a noite de 29 de Novembro teve sempre o mesmo guião para Olga Machado: participar no Cortejo do Pinheiro, assistir ao enterro da árvore da janela de casa e servir um caldo verde aos “amigos e a alguns amigos dos amigos”. “Desde que vim para aqui, é tradição”, conta ao PÚBLICO. O “aqui” é uma casa voltada para a Igreja dos Santos Passos, ponto para onde confluem todas as batidas e emoções da celebração que abre as Nicolinas – e, de longe, a mais participada.

Neste ano, o pinheiro erguer-se-á junto ao monumento nicolino de José de Guimarães, mas num gesto sem hora anunciada, nem o aparato do costume: o cortejo foi cancelado devido à pandemia, pelo que não haverá junta de bois a carregar a árvore, nem gente de gorro nicolino (vermelho com faixa verde) a serpentear as ruas de Guimarães na noite de domingo. Mas as caixas e os bombos prometem, à mesma, troar pela cidade. A Comissão Nicolina, formada por estudantes que hoje frequentam o ensino secundário de Guimarães, e a Associação dos Antigos Estudantes do Liceu de Guimarães (AAELG), que congrega os que já foram, pediram à cidade para sair às varandas e às janelas pelas 23h, ecoando o som característico da celebração.

Estudante da Escola Secundária Martins Sarmento – antigo Liceu de Guimarães – no final da década de 80, Olga Machado vai aderir com os dois filhos e o marido, com quem começou a namorar a 29 de Novembro de 2001, precisamente. “Estaremos na varanda. Pegarei no bombo conforme posso. O meu marido tocará caixa. Os meus filhos também já têm caixa. Vamos fazer essa homenagem. Esta festa de afectos é uma dupla comemoração”, diz ao PÚBLICO no seu ateliê da costura, instalado no rés-do-chão da habitação. “É importante que toda a gente participe para manter viva a tradição dentro dos possíveis”, acrescenta

Festa popular e intergeracional

Nascidas do culto a S. Nicolau, testemunhado pela capela edificada no centro histórico vimaranense entre 1661 e 1663, pelos estudantes de então, estas festas sobretudo profanas estendem-se sempre de 29 de Novembro a 7 de Dezembro, com vários números. A iniciativa de domingo aproveita, contudo, o protagonismo do Pinheiro para assegurar que a edição deste ano “não passa em branco”, diz ao PÚBLICO André Alves, aluno do 12.º ano da Escola Secundária Francisco de Holanda, eleito presidente da comissão de festas de 2020.

O cortejo tem acolhido dezenas de milhares de pessoas nos últimos anos, mas nem sempre foi assim; transformou-se desde o século XIX, período de que datam os primeiros relatos. Basta recuar 45 anos para se recordar um evento diferente. Presidente da AAELG aos 63 anos, José Ribeiro era estudante do Liceu, a única escola que organizava e participava nas Nicolinas. E o Pinheiro estava somente reservado a antigos estudantes. “Não podíamos tocar. Ter mil pessoas no cortejo já era uma multidão. Mas havia muita gente a assistir”, recorda ao PÚBLICO.

O cortejo de 29 de Novembro foi o momento nicolino que mais se alterou no tempo de vida de José Ribeiro, com a abertura à participação das mulheres e dos alunos de outras escolas após o 25 de Abril e ainda a massificação recente. Essa “transformação brutal” foi boa, considera. “O Pinheiro é uma âncora das festas. Sem esta mudança, as pessoas não se interessariam tanto pelas Nicolinas”, admite.

Há rituais que perduram, todavia. O das ceias, por exemplo, ganhou “forte enraizamento nos anos 60”, quando os “velhos” se juntavam para os rojões e o vinho verde, sendo hoje replicado por milhares de pessoas, especifica. A proximidade entre os “mais jovens e os mais velhos” é outro elemento que define a essência das Festas Nicolinas, diz. Aliás, a associação a que preside foi criada em 1961 enquanto “suporte das comissões de festas”, para garantir que os “mais jovens não deixassem as festas acabar”.

André Alves concorda que a “união entre jovens e pessoas mais velhas” é uma das marcas do “ser-se nicolino”. Neste ano, essa proximidade ajuda a lidar com um Novembro “aborrecido”, sem o alvoroço das moinas – as sessões de treino para o cortejo, que foram canceladas. “A cidade está um bocado apagada. Sem o som, nem parece Guimarães”, reitera o estudante.

A edição possível

Face à situação pandémica, as festas de homenagem a uma figura que, no século IV, terá sido bispo de Mira — hoje a cidade de Demre, na costa mediterrânica da Turquia — e que é vista como padroeira dos pobres e das crianças, foram reconfiguradas. Há números que simplesmente não vão acontecer, como o das Roubalheiras, no qual os estudantes “roubam” objectos numa das noites, para depois os exporem no Largo do Toural, e o das Maçãzinhas, sempre a 6 de Dezembro. Mas as Danças e o Pregão, récita de um texto satírico-retórico por um estudante, vão ser transmitidas nas redes sociais. “Vai ser recitado e gravado no interior da Câmara Municipal. Depois, é transmitido”, diz André Alves.

Já as Posses, um número onde os estudantes recolhem bens para o seu Magusto, vão decorrer com outro fim. Os bens angariados vão ser doados ao Lar de Santo António, vulgarmente conhecido como Casa dos Pobres, informou André Alves.

Nota: O PÚBLICO alterou o artigo, por ter erradamente referido que o pinheiro não seria erguido no domingo. Apenas cortejo que, anualmente, culmina na elevação da árvore não se vai realizar.

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