O Orçamento em que todos perderam

Temos assim que um Orçamento nascido engelhado sai da votação final global transformado numa manta de retalhos, ora incoerente, ora fútil, ora perigoso, que tanto revela na sua falta de sentido a fragilidade do Governo como o instinto necrófago das oposições

Na ressaca das eleições legislativas de 2019, que aumentaram a bancada parlamentar do PS de 86 para 108 deputados, o primeiro-ministro acreditou estar ao seu alcance uma governação que dispensasse mimos ou posições conjuntas com os parceiros à esquerda que durante quatro anos lhe garantiram uma governação tranquila. No final do Verão deste ano, o primeiro-ministro acreditou ter força e poder de persuasão suficiente para afastar o PSD de toda e qualquer solução governativa. Nos últimos dias, a aprovação do Orçamento do Estado de 2021 veio provar que a confiança de António Costa para manobrar as votações no Parlamento era excessiva. Esta quinta-feira, ouvimo-lo a queixar-se dos que “desertaram” ou a prometer subverter medidas aprovadas contra a sua vontade trocando um cão por um gato.

Podemos presumir que o erro de avaliação do primeiro-ministro se justifica pelo deslumbramento com a longevidade da frágil, mas apesar de tudo estável, solução política que engendrou na anterior legislatura ou pela sobranceria com que encarou os seus pares. Mas é importante olhar também para o ruidoso mercado de medidas que se instalou em São Bento para se perceber que a sua vulnerabilidade actual é igualmente o testemunho de um Parlamento mais dependente dos humores da convenção, do comité central ou da direcção dos partidos do que das necessidades do país. Perante a fraqueza do Governo, a tortura minuciosa do PCP, a querela frívola do Bloco e as opções quezilentas do PSD, fizeram-se e desfizeram-se medidas mais ao sabor dos humores e ressentimentos do que à luz da responsabilidade e da gravidade do momento em que vivemos.

Temos assim que um Orçamento nascido engelhado sai da votação final global transformado numa manta de retalhos, ora incoerente, ora fútil, ora perigoso, que tanto revela na sua falta de sentido a fragilidade do Governo como o instinto necrófago das oposições. Em vez do alívio que em circunstâncias normais sucede à votação da mais crucial lei do país, sobra, pelo contrário, o medo de que a lógica, a racionalidade, a noção de rumo e a cultura de responsabilidade estão a desertar da vida política. Quando, no auge de uma crise terrível, se desata a dar tudo a todos, quando, num momento que exige prudência, se põem até em risco contratos assinados pelo Estado, quando, numa altura em que se recomenda sentido de prioridades, os deputados se distraem com bizarrias ridículas, há razões para ter medo. Se, como advertiu o Presidente em Março, “não se pode começar a legislatura com ambiente de fim de ciclo”, a história do Orçamento prova que esse ambiente se adensou e começa a ficar irrespirável.

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