Primeiro-ministro da Etiópia dá ordem ao Exército para avançar sobre a capital de Tigré

Abiy Ahmed anuncia “fase final” da ofensiva militar, depois de terminado o ultimato de 72 horas para os líderes regionais se renderem. ONU teme agravamento do drama humanitário na região.

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Um homem armado guarda sacos de ajuda humanitária no campo de refugiados de Fashaga, junto à fronteira entre Etiópia e Sudão MOHAMED NURELDIN ABDALLAH/Reuters

Terminado o ultimato de 72 horas que foi dado aos líderes da Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT) para se renderem, o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, deu esta quinta-feira ordens ao Exército para avançar sobre o Norte do país.

Os soldados do Governo federal vão, assim, pôr em marcha a “fase final” da ofensiva militar sobre Tigré, que inclui a tomada da capital da região, Mek’ele, uma cidade com cerca de 500 mil pessoas.

“O último portão pacífico que estava aberto para a FLPT poder entrar está agora firmemente fechado”, anunciou Abiy no Twitter. “A nossa campanha de garantia do Estado de direito chegou à sua fase final”. 

O primeiro-ministro aconselhou a população a “ficar em casa”, mas advertiu que o Exército actuará “sem piedade” se os civis não se afastarem dos combatentes da FLPT. “Vamos ter o maior cuidado em proteger os civis”, garantiu, ainda assim.

Saviano Abreu, porta-voz da missão humanitária das Nações Unidas, afirma, no entanto, que que o Governo e a FLPT não puseram em prática qualquer plano para um corredor humanitário entre a Mek’ele e as zonas da região já estabilizadas.

“Desde o início do conflito que não temos sido capazes de enviar quaisquer provisões [para os civis] por causa dos bloqueios impostos por todas as partes”, lamenta Abreu, citado pela Deutsche Welle. “A população de Tigré está aterrorizada”. 

Na véspera, o primeiro-ministro etíope e vencedor do Prémio Nobel da Paz de 2019 já tinha rejeitado os apelos da comunidade internacional para um cessar-fogo em Tigré e para o diálogo com a FLPT, denunciando o que considera serem tentativas de interferência nos assuntos internos no país africano.

O ultimato de 72 horas decretado terminou na noite de quarta-feira e não mereceu resposta da FLPT, mas o facto de as comunicações estarem cortadas na região, dificulta a confirmação das tomadas de posição dos líderes tigrés.

Drama humanitário

A ofensiva militar arrancou no início do mês, após meses de tensão crescente entre o Governo federal e a FLPT, que tiveram como ponto máximo de tensão a realização de uma eleição regional em Tigré, não-reconhecida por Addis Abeba. Desde então, a região tem sido palco de confrontos violentos entre as forças armadas dos dois lados do conflito.

Uma organização independente que investiga acusações de violência contra civis na Etiópia corroborou, na terça-feira, o relatório da Amnistia Internacional que denunciou a chacina de pelo menos 600 pessoas em Tigré e disse que estão em causa “violações dos direitos humanos que podem representar crimes contra a humanidade e crimes de guerra”.

Mais de 40 mil pessoas abandonaram a região, em direcção ao Sudão, e quase 100 mil refugiados eritreus que residiam em campos no Norte de Tigré ficaram expostos às linhas de fogo.

O Sudão é um dos países mais pobres do mundo e conta com mais de um milhão de refugiados no seu território. A crise em Tigré ocorre num momento em que o país atravessa uma difícil transição, desde a destituição, em Abril de 2019, do antigo Presidente Omar al-Bashir.

As Nações Unidas alertam para a situação “muito crítica” na região. De acordo com o seu relatório mais recente, o combustível e o dinheiro estão a esgotar-se. Estimam ainda que mais de um milhão de pessoas estejam deslocadas e que a alimentação de quase 100 mil refugiados da Eritreia desaparecerá numa semana. 

Mais de 600 mil pessoas não receberam, este mês, as rações alimentares das quais dependem para sobreviver, acrescenta a ONU.

“A região securitizou-se”

Numa entrevista recente ao PÚBLICO, Ahmed Soliman, investigador da Chatham House, assumia que “as perspectivas são terríveis do ponto de vista humanitário” e alertava para os riscos do prolongamento do conflito para a estabilidade da Etiópia e de toda a região do Corno de África.

“O pior que pode acontecer é um cenário em que a conquista de Mek'ele leva a FLPT a transformar-se num movimento insurgente, a juntar um enorme apoio popular à sua volta e a utilizar, para os seus fins, a quantidade significativa de forças armadas e de armamento que existem em Tigré. A região securitizou-se nos últimos anos e o potencial de conflito a larga escala é grande”, sublinhava Soliman.

Segundo o investigador britânico, o Governo de Abiy necessitará sempre de ter apoios em Tigré para estabilizar a região, pelo que pode não lhe chegar controlá-la militarmente. Nesse sentido, acredita, é fundamental haver diálogo entre as partes.

“É necessário que a maioria da população tigré queira a paz. Mesmo que o Governo consiga instalar um executivo provisório, precisa sempre do apoio das pessoas que lá vivem para implementar a paz. Será que o tem? Se não houver negociações, será difícil evitar um conflito prolongado”, reitera Soliman. “Os problemas estruturais que a Etiópia tem não podem ser resolvidos pela luta armada e pelo derramamento de sangue – não haverá vencedores”.

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