Líder do sector automóvel diz que “se calhar é preciso invadir Lisboa”

ACAP está indignada com proposta aprovada no Parlamento que limita descontos no ISV a híbridos com autonomia eléctrica mínima de 50 km.

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PAULO PIMENTA

O presidente da Associação Automóvel de Portugal (ACAP), José Ramos, considera inexplicável a reformulação dos benefícios fiscais à compra de carros híbridos e híbridos plug-in sem que o sector tenha sido ouvido. Embora diga que não é a favor de “atitudes musculadas”, o líder da maior associação do sector automóvel nacional avisa que “se calhar é preciso invadir Lisboa” com “uma frota” e promover um protesto de rua em frente à Assembleia da República, para que deixem de ser tomadas decisões sem ouvir os representantes do sector.

“Negligência ou não, a verdade é que foi aprovado. Não pode um sector ser apanhado nestas negociações”, lamenta o secretário-geral da ACAP, Hélder Pedro, apontando para um “retrocesso” nas políticas de apoio à redução de CO2 no transporte privado.

Em causa está a proposta do PAN, aprovada com apoio do PS e do BE, durante a votação na especialidade do Orçamento do Estado para 2021. Ficam limitados os incentivos fiscais à compra de veículos híbridos e híbridos plug-in para veículos com autonomia superior a 50 quilómetros, ao invés da proposta inicial, que previa 80 km. PCP, CDS, Chega e IL votaram contra.

Também a Associação Nacional do Ramo Automóvel (​ARAN) diz estar “indignada” com esta decisão, aprovada no âmbito do novo Orçamento do Estado, e que implica que só os híbridos com autonomia eléctrica mínima de 50 km passam a ter desconto de 60% no ISV. Para a ARAN “este é um Orçamento mau para o sector que ficou péssimo”. “Esta é uma medida que parece preferir um parque automóvel antigo e mais poluente.”

José Ramos considera o limite dos 50 km “um disparate”. “Não há nenhuma viatura com essa autonomia”, protesta. “Se tivessem ouvido especialistas na matéria, se tivessem ouvido a ACAP não teriam feito isto, porque eles não percebem nada disto”, acusa.

Hélder Pedro acrescenta que a regra aprovada nem sequer é possível de cumprir neste momento. “Nestes veículos híbridos, os certificados de homologação não referem a autonomia em modo eléctrico. Portanto há até uma inexequibilidade prática”, vinca.

Numa versão inicial, a proposta do PAN previa um limite menos restritivo, de 80 km de autonomia. Mas depois esse valor baixou para 50 km, o que deixa os responsáveis do sector à beira de um ataque de nervos. Aliás, “ataque” é uma das palavras mais usadas neste momento pela ACAP, argumentando que o Governo continua a pôr de lado os interesses de um sector que é o maior exportador nacional e, “pior que tudo”, põe em causa metas ambientais. 

A proposta do PAN determina que “o cálculo do Imposto sobre Veículos (ISV) e das tributações autónomas em IRC” passe a obedecer a “critérios que restrinjam os apoios a híbridos e híbridos plug-in que satisfaçam cumulativamente as condições de terem uma autonomia em modo eléctrico superior a 50 km e emissões oficiais inferiores a 50 gCO2/km”.

A justificação para esta mudança é que "muitos destes automóveis são híbridos plug-in ‘de fachada’, (...) porque têm baixas autonomias em modo eléctrico, raramente são carregados, têm potentes motores de combustão interna, e são também com frequência grandes e pesados (muitos são SUV), o que os faz apresentar na prática emissões de CO2 duas a quatro vezes superiores às contabilizadas nos testes”.

Pablo Puey, presidente do Conselho Estratégico da ACAP, rejeita estes argumentos sublinhando que os estudos que poderão estar na base daquelas conclusões foram feitos “a determinados carros, em determinadas condições”. “Temos tentado falar com toda a gente e explicar a situação a toda a gente. Sabemos que esta altura é difícil, mas há uma mensagem que tem de passar: já chega.” 

Os três responsáveis falavam numa conferência de imprensa, nesta quinta-feira, durante a qual foi revelado que o PAN tinha entretanto respondido à ACAP dizendo, em resumo, que “independentemente” de uma eventual falta de rigor técnico, “isso não invalida” a proposta de eliminar o que para o PAN são “distorções” fiscais que beneficiam carros que são mais poluentes do que se supunha, na opinião deste partido e segundo alguns estudos

“Aquilo que se passou no Parlamento foi a maior desilusão das últimas décadas”, diz José Ramos. “Dois governos liderados pelo mesmo partido e com o mesmo ministro do Ambiente entram numa contradição incrível. Como se lembram, o ministro sustentou que os carros diesel iriam acabar. Esta decisão que foi tomada ontem, em sentido contrário, mostra que o mesmo partido tem duas atitudes. Aquilo que vai acontecer [com a mudança dos incentivos] é um aumento do desemprego, vamos assistir aumento de CO2 e NOx porque vai aumentar as vendas dos carros a gasóleo e a gasolina.”

Os carros híbridos convencionais têm 7,2% da quota de mercado nas vendas este ano. Os híbridos plug-in valem 7% e os eléctricos são 4,9%. Dados relativos a 2020, de Janeiro a Outubro, período em que o mercado nacional de ligeiros caiu 37%. Outros dados apresentados hoje confirmam que Portugal tem um dos parques automóveis mais envelhecidos da Europa ocidental, com uma idade média próxima dos 13 anos. Pablo Puey insiste na necessidade de políticas que apoiem a substituição, porque um carro novo, com motor de combustão interna, emite hoje menos 30gCO2/km do que um carro com essa idade.

Hélder Pedro avisa que um recuo na venda de híbridos terá como consequência um aumento potencial nas emissões. A proposta do PAN “retira benefício fiscal a um segmento importante, mas o mais grave é o retrocesso para o cumprimento das metas de CO2”, insiste.

“A redução das emissões é fundamental na Europa e não se consegue só com os eléctricos, mas também com os híbridos. Temos até agora 5% de vendas de eléctricos, Portugal está próximo de países com PIB per capita mais elevado, fez um grande avanço e a proposta aprovada [no Parlamento] é contraditória porque está em contraciclo. Assim é muito difícil estar no mercado, e ter confiança nos poderes públicos.” 

José Ramos conclui: “Estão muito preocupados com os híbridos, mas não estão preocupados com as viaturas importadas usadas. Não obstante a nossa abertura e a nossa postura, por que é que a ACAP não é considerada? Se calhar a solução é invadir Lisboa com uma frota de carros para sermos ouvidos. Não gosto disso, não acredito nisso, mas se calhar…”

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