Crónica de uma infectada com covid-19: “Não acontece só aos outros”

Um diagnóstico positivo e uma cascata burocrática e emocional que se avizinhava. A infecção pelo novo coronavírus contada na primeira pessoa.

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SARS-CoV-2 National Institute of Allergy and Infectious Diseases/REUTERS

“Não acontece só aos outros.” Não consigo enumerar quantas vezes, desde Março, disse ou escrevi (devido à migração para o online que a pandemia da covid-19 forçou) esta frase. Quando o meu diagnóstico positivo chegou, pensei-o uma vez mais, ainda inconsciente da cascata burocrática e emocional que se avizinhava.

Uma grande parte da minha — ainda curta — carreira enquanto jornalista tem já um selo “SARS-CoV-2”. Antes de saber que estava infectada, era já difícil pensar, ler ou escrever sobre outra coisa que não o novo coronavírus, que chegou sem aviso e deixou o mundo do avesso. Quando acordei, da noite para o dia, completamente sem olfacto nem paladar, tinha 80% de certeza de que era aquele pequeno agente infeccioso, com uma coroa de espinhos à sua volta, o responsável por não conseguir sentir o sabor do meu café. Os restantes 20%? Julgo que eram esperança.

Entre a ansiedade de conseguir marcar e fazer o teste e o aguardar do resultado, os dias passaram e o diagnóstico chegou. O SARS-CoV-2 tinha sido “detectado”.

Foi então que desejei ser o herói do Matrix, Neo, sentado num cadeirão rompido de pele, com Morpheus a dar-me a escolher entre o comprimido azul ou o vermelho. Teria escolhido o azul. Depois, mentalizei-me. Mesmo que repetissem incessantemente frases como “mas tu tinhas tantos cuidados” ou “eras a última pessoa que imaginava que ficaria infectada”, mentalizei-me.

Apesar dos meus esforços para convencer os outros (e a mim mesma), durante os últimos meses, de que não somos intocáveis, há uma espécie de crença irracional de que somos inatingíveis, quase inalcançáveis, especialmente por algo que não conseguimos ver, que não é palpável. Ao meu pai (confiante e, ao mesmo tempo, esperançoso de que a perda de olfacto fosse uma mera coincidência), a incredulidade custou-lhe 100 euros, depois de ter apostado essa quantia numa odd demasiado baixa — sim, a minha mãe já sublinhou, várias vezes, que “não se fazem apostas com essas coisas”.

Comecei a pensar no processo. Do hospital privado onde fiz o teste ligaram-me e explicaram que seria contactada pelas autoridades de saúde. Mas o código para introduzir na app StayAway Covid nunca chegou, passaram-se três dias desde o diagnóstico e eu ainda não tinha recebido nenhuma chamada. Sem perceber qual era o protocolo, liguei para o SNS24, fui sinalizada e acabei por eventualmente começar a ser contactada diariamente pelo médico de família. Passados vários dias, a saúde pública também acabou por ligar, mas nada de rastreamento de contactos. Avisar as pessoas com quem tinha estado passou a ser uma responsabilidade meramente minha e, até hoje, passadas já três semanas desde que recuperei, continuo à espera que me perguntem com quem estive e onde poderia eventualmente ter apanhado o vírus. “Vale o bom senso”, pensei, à medida que a desorganização e descoordenação das autoridades de saúde me começaram a preocupar — não por mim, mas pelo que aí vinha. Com milhares de novos casos por dia, será que todos saberão como devem agir caso não recebam indicações das autoridades de saúde?

Tentar abstrair-me da pandemia passou a ser a minha principal preocupação (irónico, não é?). Tentei ignorar os números diários da covid-19 em Portugal, ainda que, por força do hábito, o dedo deslizasse muitas vezes pelo ecrã do telemóvel em direcção ao site do meu jornal. Por outro lado, questionava: “Quando farei parte daquele número de recuperados?”

Cozinhar passou a ser o hobby predilecto de alguém que não tinha paladar — fosse essa, na verdade, a menor de todas as ironias. Entre videochamadas, séries e a medição constante (e quase obsessiva) da minha temperatura corporal, parte dos meus dias era também marcada pela incompreensão, a frustração e a ansiedade. Será que tinha infectado mais alguém? Afinal, como tinha eu sido infectada? Revivi todos os dias que precederam o diagnóstico. O que tinha feito, com quem tinha estado, que locais tinha frequentado. Mesmo assim, parecia-me incompreensível. Os resultados dos testes aos meus contactos próximos chegaram dias depois: todos negativos, eu era a única infectada e algumas perguntas ficaram sem resposta. Seria culpa minha?

À culpa, juntou-se o medo. Mas teria eu mais receio do desconhecido ou daquilo que sabia que poderia acontecer? “Tenho covid-19. Hoje estou bem, mas será que amanhã vou estar? Inúmeros são os casos de pessoas aparentemente saudáveis, cujo estado de saúde, de um momento para o outro, se agravou. Ainda se sabe tão pouco sobre o vírus”, repensava, sem conseguir agora imaginar o que passará pela cabeça daqueles que (ao contrário de mim, que tive apenas sintomas ligeiros) enfrentaram estados graves da doença.

Aprendi a distinguir a ansiedade da dificuldade em respirar, fui melhorando, tive alta, fiz parte daquele número de recuperados, voltei a sentir o sabor do café e comecei a sair de casa a medo.

Por último, veio o estigma. Aquele amigo que dizia não ter medo “de nenhum vírus”, que era contra o confinamento mas que, quando a ameaça se tornou real, se desdobrou em receios e pôs oficialmente em prática o conceito de distanciamento social. E, pior, o estigma — indissociável do medo — que tinha por mim própria.

“À medida que isto vai evoluindo, a ciência vai descobrindo cada vez mais sobre este vírus e as orientações vão-se adaptando. Acredita, os teus pais estão muito mais em risco se estiverem com qualquer outra pessoa (que não sabem se está infectada) do que contigo, que já não estás infecciosa”, dizia-me o médico. Repeti várias vezes na minha cabeça até que interiorizei.

Hoje, não sei ainda como ou onde fiquei infectada e continuo a repetir incessantemente a necessidade de cumprirmos as normas e limitarmos o risco ao máximo. A única diferença? Conhecimento de causa. “Não acontece só aos outros.”

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