Bióloga Ana Hilário ao leme de programa internacional sobre o mar profundo

Comunidade de cientistas do mar profundo uniu-se para responder às lacunas de conhecimento sobre o que fica abaixo dos 200 metros de profundidade. Uma portuguesa e uma britânica coordenam a iniciativa.

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A portuguesa Ana Hilário e a britânica Kerry Howell reuniram à sua volta cientistas de 45 instituições de 17 países para avançar com um programa de investigação sobre o mar profundo, com a duração de dez anos. O Challenger 150 (já vamos à explicação do nome) é anunciado esta quarta-feira em duas revistas científicas – a Nature Ecology and Evolution e a Frontiers in Marine Science.

O objectivo deste desafio é colmatar os enormes buracos no conhecimento sobre o oceano e os fundos marinhos entre os 200 e os 11 mil metros, o ponto mais profundo do planeta. O que se entende por “oceano profundo” fica abaixo dos 200 metros e representa cerca de 60% da superfície da Terra.

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Ana Hilário a bordo do navio de investigação norueguês Kronprins Haakon DR

“O mar profundo é reconhecido globalmente como uma importante fronteira da ciência e da descoberta”, aponta a bióloga marinha Ana Hilário, do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da Universidade de Aveiro (UA), coordenadora do Challenger 150 juntamente com Kerry Howell, da Universidade de Plymouth, no Reino Unido. “Uma grande parte permanece completamente inexplorada e a humanidade conhece muito pouco sobre os seus habitats e como estes contribuem para a saúde de todo o planeta”, acrescenta Ana Hilário, citada em comunicado da UA.

De Portugal, contribuíram ainda para a concepção do Challenger 150 outros investigadores, que também co-assinam os dois artigos em que o programa é apresentado. Ou melhor, investigadoras, como nos faz notar Ana Hilário, de 42 anos. Assim, a trabalhar em Portugal ajudaram a engendrar o programa Sofia Ramalho e a espanhola Patricia Esquete (da UA), Ana Colaço (do Okeanos da Universidade dos Açores), Joana Xavier (do Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Porto) e Nélia Mestre (Centro de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Algarve).

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Navio Challenger (1858) DR

Vamos ao nome do programa. É uma referência ao ponto mais profundo do planeta – o Challenger Deep, a 10,9 quilómetros. Esta mera ranhura nas profundezas da fossa das Marianas, no Pacífico, tem este nome em homenagem ao navio britânico Challenger II, que a descobriu em 1951, graças à utilização do sonar.

O Challenger 150 ambiciona trazer à superfície o conhecimento ainda escondido nas profundezas do oceano, como se sublinha o comunicado. Por outro lado, é também uma celebração dos 150 anos (em 2022) do início da expedição do primeiro Challenger. Este navio, igualmente britânico, fez uma viagem famosa de circum-navegação do planeta, entre 1872 e 1876, permitindo obter a primeira perspectiva global da vida nas profundezas, com passagem por Lisboa e pela Madeira. Mapeou o fundo do mar, fez registos da temperatura e deu-nos “a primeira perspectiva da vida no mar profundo”.

Ana Hilário e Kerry Howell, ambas especialistas em ecologia do mar profundo, e os colegas de programa de 17 países pretendem que o Challenger 150 seja uma referência para a Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, que vai decorrer de 2021 a 2030. Isto porque o programa que as duas investigadoras coordenam irá coincidir com a iniciativa da ONU que pretende justamente preencher as lacunas no conhecimento do oceano de forma geral. O Challenger 150 pretende fazê-lo concentrando-se no mar profundo.

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A investigadora Kerry Howell

“A Década pediu aos cientistas que se unissem em programas. E a comunidade do mar profundo juntou-se neste programa liderado por mim e pela Kerry para o propor às Nações Unidas”, conta-nos Ana Hilário, esclarecendo então que o Challenger 150 surge dentro do grande chapéu que é a Década da Ciência Oceânica.

E o Challenger 150 tem financiamento? “Não, não”, responde Ana Hilário. “Por isso, é importante o esforço internacional: que cada um de nós, que já tinha projectos [de investigação], nos juntemos para preencher as lacunas de conhecimento que há neste momento.” A bióloga portuguesa deixa um apelo: “Queremos que as agências de financiamento, privadas e públicas, se foquem nos próximos dez anos nestes grandes programas que estejam referenciados pela Década. Há uma série de filantropos com navios que podem financiar estes projectos.”

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Os mentores do Challenger 150 esperam que o programa venha a gerar uma montanha de dados – geológicos, físicos, biogeoquímicos e biológicos através da aplicação de novas tecnologias –, de forma a permitir compreender as mudanças no mar profundo e no planeta. E, a partir daí, utilizar todo esse conhecimento como base de decisões nas mais diversas questões, desde a exploração mineira nos fundos oceânicos e a pesca até à conservação da biodiversidade e alterações climáticas.

“A nossa visão é a de que, dentro de dez anos, qualquer decisão que possa ter impacto no mar profundo seja tomada com base num conhecimento científico sólido dos oceanos”, defende Kerry Howell no comunicado, sublinhando que para tal “é necessário que haja consenso e colaboração internacional”.

“Um dos grandes objectivos do Challenger 150 é a capacitação e o aumento da diversidade no seio da comunidade científica, uma vez que actualmente a investigação no oceano profundo é conduzida principalmente por nações desenvolvidas com recursos financeiros suficientes e acesso a infra-estruturas oceanográficas”, nota a bióloga portuguesa. “Pretendemos formar a próxima geração de biólogos do mar profundo. Vamos concentrar-nos na formação de cientistas de países em desenvolvimento, mas também de jovens cientistas de todas as nações, incluindo Portugal.”

A ideia inicial é mesmo de Ana Hilário e Kerry Howell. “Independentemente, as duas pensámos neste programa e falámos com uma terceira pessoa, que disse a cada uma de nós que devíamos falar uma com a outra.” Falaram e o resultado está hoje aí na revista Nature Ecology and Evolution (que apresenta sucintamente o Challenger 150) e na Frontiers in Marine Science (que apresenta a estrutura de gestão do programa, as tais lacunas de conhecimento e o que se pretende fazer em termos científicos).

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