Sobre a economia da dor: não sendo boa com números, prefiro histórias

Como médica, não consigo ser indiferente a esta desoladora atmosfera de incerteza. Também não me consigo desligar da permanente preocupação para com todos os outros pacientes. Os pacientes anteriores à pandemia.

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National Cancer Institute/Unsplash

João não era esquizofrénico, mas tinha uma esquizofrenia. Não era raro encontrá-lo a fumar cigarros, muitos cigarros. O seu olhar era absorto e o movimento mecânico de levar o cigarro à boca era indiferente a tudo. Silencioso diante do mundo, ele ensinou-me a ouvir. Depois do seu desaparecimento, a sua voz enfraquecida foi-se desvanecendo com o tempo e agora resta-me na memória uma espécie de rumor confuso. Nem em sonhos ele acorda com o meu grito, encarcerado numa colina silenciosa qualquer. Resta-me a recordação crua e pesarosa das suas mãos ásperas em concha, inanimadas sobre o leito, a sua última concha protectora. 

Para mim, Maria também não era oncológica, mas tinha um cancro. Maria era o oposto do silêncio, era a gargalhada e a criança em cada gesto vivo. Tinha aquela alegria de pasmar como quem vê o mar pela primeira vez. Foi diagnosticada muito jovem com um cancro, uma dessas doenças que se entreabrem devagar e silenciosamente dentro de nós como flores. Durante algum tempo, a flor da Maria poupou-lhe o calor que emanava dentro de si, a febre e a força de outrora, mas depois acabou-se. Não me consegui despedir dela. Por isso, as últimas recordações que tenho são as de um ser frágil, ora num pranto impaciente de quem espera o inevitável, ora num repouso, um repouso estranhamente profundo. Quando as suas pálpebras se abriam, emergia um olhar distraído, quase demitido, como se lhe custasse abrir os olhos, não fosse a visão de coisas mais vivas feri-la por dentro. As suas recordações são as minhas e ecoam de janelas iluminadas, aquelas que nos lembram as noites da nossa infância, ruelas e lugares escuros, mas seguros, onde nos aguardam. 

Como médica, não consigo ser indiferente a esta desoladora atmosfera de incerteza. Também não me consigo desligar da permanente preocupação para com todos os outros pacientes. Os pacientes anteriores à pandemia. Algumas pessoas estão doentes, sentem-se abandonadas ou receiam pedir ajuda. São vários os queixumes indistintos de quem, se não sofria antes, agora sofre com o desemprego, a precariedade, a desigualdade, todos eles maus presságios de saúde física e mental. Interrogo-me sobre as suas histórias.

Para terminar, inclino silenciosamente a cabeça em homenagem a todos os profissionais que encontro nos corredores. Eles estão esgotados e dão o seu melhor diariamente, apesar das suas angústias e das suas perdas. Quando oiço uma gargalhada no hospital no meio de uma conversa animada, estremeço por dentro, acho que o que sinto é muito próximo do que outros intitulam como fé.

Espero impacientemente pela hora de violarmos juntos todas as distâncias em segurança e de, finalmente, nos tocarmos sem inquietações ou culpas, de nos felicitarmos por todo este esforço em conjunto. 

Não percebo o suficiente de economia, mas vislumbro, para além de muita ausência e défice, um somatório poderoso de forças, a nossa humanidade.

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