A OCDE não está a conseguir combater os paraísos fiscais, cabe à União Europeia fazê-lo

Os hospitais precisam de mais recursos. O sistema educacional precisa de mais recursos. As pequenas empresas, que estão à beira da falência, precisam de mais recursos. E alguém terá que pagar a conta. É por isso que é urgente irmos buscar esses fundos onde eles estão, nos paraísos fiscais. E como a OCDE não pode impor reformas, é hora de a União Europeia avançar.

Era realmente esperado que o clube dos países ricos que é a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) fosse capaz de oferecer as soluções mundiais para acabar com os abusos fiscais por parte das multinacionais? Sete anos após ser designada pelo G20 – as 20 maiores economias do mundo – para rever o sistema tributário internacional, a instituição sediada em Paris apresentou recentemente uma série de propostas que eram tão complexas quanto decepcionantes.

No início do ano, houve algum otimismo: pela primeira vez, os países concordaram que as empresas deveriam pagar seus impostos de acordo com a localização de seus clientes, fábricas e funcionários, e não de acordo com o local onde compraram um endereço postal em paraísos fiscais. No entanto, o processo continua a fazer muito barulho  por nada, o que não é surpreendente. A OCDE havia tentado legitimar sua pretensão de falar em nome de todos, criando um “marco inclusivo” envolvendo países em desenvolvimento. Na realidade, das 137 nações sentadas à mesa de negociações, somente os países do G7, que abrigam as sedes das grandes multinacionais, têm voz. Em última análise, as soluções defendidas pela OCDE limitariam muito pouco os fluxos financeiros aos paraísos fiscais e os escassos recursos recuperados beneficiariam principalmente os países ricos.

Já escandalosa antes, esta situação é simplesmente intolerável num momento em que o planeta está sendo devastado pela pandemia do coronavírus. Os serviços públicos em todos os países – os pobres, mas também os mais ricos – estão lutando para lidar com a emergência, após décadas de cortes no orçamento. Isto apesar de o fato de que todos os anos os governos perdem mais de US$ 427 bilhões em paraísos fiscais, como revela um recente relatório intitulado “O Estado da Justiça Fiscal”, publicado pela Tax Justice Network, Public Services International e a Global Tax Justice Alliance.

O primeiro a estimar, país por país no mundo, a perda de recursos causada por abusos fiscais corporativos e individuais, e o que isto representa em termos de gastos com saúde, este relatório é arrepiante. Globalmente, esses desvios correspondem a 9,2% dos orçamentos de saúde, o equivalente aos salários de 34 milhões de enfermeiros. O impacto é ainda mais devastador nos países em desenvolvimento, onde o déficit representa 52,4% de seus gastos com saúde. Em Portugal, as perdas representam 7,63% do orçamento de saúde do país, e pagariam os salários de 50.000 enfermeiros a cada ano.

Os hospitais precisam de mais recursos. O sistema educacional precisa de mais recursos. As pequenas empresas, que estão à beira da falência, precisam de mais recursos. E alguém terá que pagar a conta. É por isso que é urgente irmos buscar esses fundos onde eles estão, nos paraísos fiscais. E como a OCDE não pode impor reformas, é hora de a União Europeia (UE) avançar, em particular introduzindo um imposto mínimo efetivo sobre os lucros das empresas.

Na Comissão Independente de Reforma Tributária para Empresas Internacionais (ICRICT) – da qual sou membro, juntamente com economistas como Joseph Stiglitz, Thomas Piketty e Gabriel Zucman –, estimamos que deveria ser de pelo menos 25%. De fato, até mesmo o Presidente eleito dos Estados Unidos, Joseph Biden, está exigindo um mínimo global de pelo menos 21%. Advogar um nível mais baixo – 12,5%, como argumentam alguns Estados – na verdade alimentaria uma corrida para baixo em termos de impostos corporativos, causando uma nova queda na receita tributária.

É claro que existe uma forte oposição dentro da própria UE, por uma razão simples: se apontamos facilmente o dedo para as pequenas ilhas do Caribe, é para nos fazer esquecer que a Europa está cheia de paraísos fiscais. A cada ano, por exemplo, a Holanda rouba o equivalente a 10 bilhões de dólares de seus vizinhos da UE, enquanto a França é a primeira vítima, com 2,7 bilhões de dólares desviados. Mas a Holanda não está sozinha: Luxemburgo, Irlanda, Chipre e Malta fazem o mesmo.

Este grupo de Estados tem bloqueado qualquer reforma durante anos, aproveitando o fato de que as questões tributárias exigem unanimidade. Entretanto, a presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, tem uma arma poderosa com a qual pode avançar. O artigo 116 do Tratado, relativo à igualdade das regras de concorrência entre Estados – violado por este dumping fiscal –, permitiria contornar a exigência de unanimidade e pôr fim à pilhagem de recursos fiscais por certos Estados. Ursula von der Leyen tem força política para fazer isso e deve ser apoiada pela Alemanha, que detém a presidência do Conselho Europeu até o final do ano e é um dos países mais afetados por abusos fiscais corporativos. Se o tempo for muito curto, Portugal, que assume a presidência em janeiro, também pode fazê-lo.

Uma iniciativa da Comissão seria ideal, especialmente porque teria um impacto global, uma vez que a Europa é um mercado chave para as multinacionais. Mas caso isso não aconteça, França, Alemanha, Espanha, Itália e outros países da região poderiam, juntos, instituir esta reforma fiscal, graças ao mecanismo de cooperação reforçada que pode ser estabelecido com um grupo de pelo menos nove países – que permitiu, por exemplo, a criação de um Ministério Público Europeu. Numa época em que a segunda onda do coronavírus está colocando toda a Europa de joelhos, o status quo é mais inaceitável do que nunca.

Eva Joly é membro da Comissão Independente para a Reforma Tributária Internacional (ICRICT) e ex-membro do Parlamento Europeu, onde foi vice-presidente da Comissão de Inquérito sobre Lavagem de Dinheiro, Evasão Fiscal e Fraude

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico​

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