Vitrais contemporâneos e mobiliário moderno relançam a polémica em volta do restauro da Catedral de Notre-Dame de Paris

Arcebispo de Paris defende a modernização e uma melhor iluminação do templo que foi parcialmente destruído por um incêndio em Abril de 2019. Mas as reservas são muitas.

Foto
Reuters

Na semana em que se iniciou a remoção final dos andaimes calcinados pelo fogo de 15 de Abril de 2019 e numa altura em que se acreditava que a decisão, tomada no passado mês de Julho, de que a reposição da flecha, e o restauro em geral, seguiriam o desenho oitocentista de Eugène Viollet-le-Duc, abriu-se uma nova frente de polémica em volta do que vai ser no futuro a Catedral de Notre-Dame de Paris.

A notícia foi avançada, na última sexta-feira, pelo jornal Le Figaro, que divulgou as linhas gerais do projecto do arcebispo de Paris, monsenhor Michel Aupetit, que apontam para a substituição de alguns dos vitrais históricos por vitrais contemporâneos e para a modernização do mobiliário do templo. Hipóteses que mobilizaram de imediato o regresso do debate em volta do restauro, cujo projecto está a ser coordenado pelo arquitecto Philippe Villeneuve, daquele que é o monumento mais visitado em França.

Várias publicações francesas fizeram-se eco das propostas do arcebispo responsável pela Notre-Dame de Paris, mas também das críticas que elas já motivaram. A aposta em vitrais contemporâneos teria como objectivo aumentar a iluminação da igreja, a partir das capelas laterais — o que significaria substituir parte dos vitrais instalados no século XIX pelo arquitecto Viollet-le-Duc, e que milagrosamente escaparam ao incêndio do ano passado.

Simultaneamente, as velhas cadeiras de madeira e palha, os confessionários e os altares laterais seriam substituídos por mobiliário moderno, acrescentados de um sistema de iluminação integrado nos próprios bancos mas também na base das colunas, um layout que Le Figaro comparou com a imagem nocturna de “uma pista de aeroporto ou de um parque de estacionamento”.

Nova cenografia

Estas sugestões saíram da reunião que monsenhor Michel Aupetit promoveu com várias figuras da Diocese de Paris, como o seu vigário geral, Benoist de Sinety, e o padre Gilles Drouin, director do Instituto Superior de Liturgia da capital francesa, mas também com o ex-presidente do Museu do Louvre, Henri Loyrette, e o general Georgelin, especialista em gares ferroviárias. Dessa reunião terão também saído os nomes de figuras a contactar para a elaboração de uma nova cenografia para o interior do templo, entre elas a arquitecta de interiores Nathalie Crinière, que foi responsável pela cenografia da exposição que o Museu de Artes Decorativas de Paris dedicou, entre Julho de 2017 e Janeiro de 2018, a Christian Dior, o “Costureiro do Sonho”, e também o especialista em iluminação Patrick Rimoux.

Reagindo às dúvidas e à polémica provocada por estas propostas, a directora de comunicação da Diocese de Paris, Karine Dalle, citada pelo diário católico La Croix, esclareceu que este é um “projecto que ainda está em desenvolvimento”, e que “várias abordagens são possíveis”, avançando também que só lá mais para a frente, previsivelmente em Janeiro, se conhecerão mais detalhes sobre este dossier.

Ao mesmo diário, normalmente visto como porta-voz da Igreja francesa, Gilles Drouin especificou que a diocese parisiense pretende aproveitar a ocasião do restauro para responder ao duplo desafio de acomodar os 12 milhões de visitantes que todos os anos franqueiam as portas da Notre-Dame de Paris e proporcionar-lhes “uma visita melhorada”.

Articular o culto com a cultura

O princípio que emanou do grupo de trabalho — acrescentou o membro da direcção do Instituto Católico de Paris — foi o de manter “uma catedral integralmente católica, mas aberta a toda a gente”. “Trata-se de evitar a síndrome da Catedral de São Marcos, em Veneza, onde os católicos só podem celebrar o seu culto num espaço residual; na Notre-Dame, celebramos no meio dos visitantes, com eles e por eles; apostamos na articulação do culto com a cultura”, acrescentou Gilles Drouin.

A verdade é que muitos sectores reagiram criticamente a esta tentativa de “modernização” de um monumento como a Notre-Dame de Paris, e Le Figaro referiu-se mesmo a um possível atentado à Carta de Veneza (1964), documento adoptado pela UNESCO e pelo ICOMOS, que rege o restauro do património histórico. Por outro lado, as novas propostas poderiam pôr em causa as expectativas criadas junto dos doadores que se prestaram a apoiar a recuperação do templo, mantendo a sua integridade. Mas também a atmosfera de um monumento de origem medieval dedicado ao culto do sagrado, com a dinâmica de luz e sombra que lhe é próprio.

Em defesa da “modernização” e de uma melhor iluminação da Notre-Dame, o grupo de trabalho reunido pelo arcebispo Michel Aupetit fez saber que os novos vitrais, com a altura de seis metros, não seriam figurativos, apenas decorados com motivos geométricos, e também com a transcrição de versículos da Bíblia, que a luz exterior projectaria nas paredes da igreja.

A propósito deste tema, a revista mensal Connaissance des Arts cita vários casos de templos em França que foram já alvo de intervenções contemporâneas ao nível dos vitrais, como os que Marc Chagall realizou, na década de 1960, para a Catedral de Metz, ou a mais recente, do artista abstracto alemão Imi Knoebel, na Catedral de Reims.

De resto, a própria Catedral de Notre-Dame, além das sucessivas alterações e restauros desde o edifício original do século XII-XIV — entre eles a instalação dos vitrais de Viollet-le-Duc —, viu em 1966 serem substituídos vários vitrais góticos pela arte abstracta de Jacques le Chevalier, como se pode ver no site do próprio templo.

Enquanto esta nova polémica parece conter todos os ingredientes para se prolongar durante os próximos tempos — mesmo se a última palavra caberá sempre à Comissão Nacional do Património —, o trabalho de restauro do templo propriamente dito vai avançando: depois da fase de limpeza do chumbo acumulado no interior e nos arredores do edifício, e mesmo em tempo de pandemia, uma equipa está já a ocupar-se do restauro da Capela de São Fernando, a primeira das vinte que integram a Notre-Dame de Paris.

Sugerir correcção
Comentar